Fátima Oliveira: No tempo em que a TV dava boa noite

Tempo de leitura: 3 min

Nas abas do mundo: no tempo em que a TV dava boa noite

Fátima Oliveira, em O Tempo

Médica – [email protected]

Meu avô Braulino, pai de mamãe, possuía uma terrinha nas imediações do Barro Azul, em João Lisboa (MA), aonde se chegava por uma picada na mata em que só passavam jeep, Toyota e caminhão madeireiro, o meio de transporte mais comum ali, e olhe lá! Com inverno rigoroso, só de burro, cavalo, jumento ou de surrão nas costas. Um doente só saía de lá na rede – pendurada numa vara nos ombros de dois homens que palmilhavam 50 quilômetros de estrada de chão até o primeiro socorro médico, em Imperatriz (MA). Muita gente morria na estrada. Em geral, grávidas, crianças e velhos.

Tal propriedade distava légua e meia da fazenda do meu marido, aonde o pai velho ia muito, a pé ou a cavalo, só para prosear e, às vezes, comer um tatu, um jabuti, um cabrito ou uma leitoa, pratos mais afamados. Naquela terra, ele pelejava, quase no fim da vida, nuns roçados de feijão, milho e arroz e negociando “legume na folha”: comprava a safra de outros camponeses antes da colheita, fornecendo dinheiro para o plantio, pois naquela época crédito rural era algo inacessível para a maioria dos camponeses.

Na época do plantio e da colheita, ele passava a semana por lá. Ia a Imperatriz aos sábados e domingos. Tal rotina foi interrompida quando um vaqueiro o encontrou estendido na estrada, desacordado. Era esperado para o almoço no Barro Azul. A tarde já se esvaía. Ele jamais faltava a um compromisso e, como não mandou avisar que não viria, meu marido mandou ver o que acontecera. Desde então, foi proibido por nós de fazer o que mais gostava: “Viver no mato só escutando macaco gritar e vendo preguiça se pentear”.

Em casa, ele implicava com tudo. A vida de vovó virou um inferno, só suavizada quando o levávamos para exposições agropecuárias, vaquejadas e assemelhados na região. Virou uma espécie de consultor de compras de gado e outros animais do meu marido, que só fechava o negócio depois do pai velho “assuntar” se era bom. Ele “dormia com as galinhas”, ou seja, cedo da noite, na toada da roça. Odiava TV. Vovó adorava ficar grudada na TV, que só desligava quando ela dava boa noite! É, houve um tempo em que a TV dava boa noite e encerrava a programação! Acho que era quando dava meia-noite.

Quando ele estava irritado, levar minhas crianças para a casa dele era um santo remédio. Cadeira na calçada, meninada em volta, apareciam os vendedores de picolé, geladinho, pipoca, amendoim torrado, castanha de caju, cuscuz Ideal, guaraná River gelado – refrigerante imperatrizense em garrafinhas de 200 ml – e o escambau. E ele a comprar! Dizia que era para as crianças, mas ele traçava de tudo. E não podia! Era diabético. “Passava a língua” na criançada para que não contasse à vovó que ele comia coisas doces. Ela ficava dentro de casa ouvindo novela no rádio, em que também era viciada!

Uns dois a três anos após o obrigarmos a viver na cidade, já demenciando, mal me via, pedia: “Minha filha, me manda para a roça, que isso aqui não é vida, pois essa mulher aqui vive de procurar homem na TV. Esses homens todos aí são xodós dela. Depois de velho, virei foi corno!”. Vovó, que se recusava a entender que ele não era mais a lucidez em pessoa, se exasperava: “Ah, é bom se deitar sozinho, né? Quem tem com que me pague não me deve nada! Depois de velho, quer se esquentar em minhas costelas, é ruim hein? Quando novo, selava o cavalo na sexta-feira à noite e caía nas abas do mundo, farriando nas quebradas com as quengas, e só aparecia no domingo à noite!”.

Doces lembranças…


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Comentários

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Fátima Oliveira

Oi gente, obrigada pela leitura e pelos comentários. Meu avô Braulino era um figuraça e um avô maravilhoso.

    Morvan

    Fátima, que ele era uma figura carimbadíssima nós sabemos. Tu poderias fazer um tomo de alguns causos dele e publicar…
    Morvan, Usuário Linux #433640

Marcos Doniseti

Azenha, olha que texto genial que o Antonio Prata escreveu na 'Folha' (por incrível que pareça…):

O aeroporto tá parecendo rodoviária – Antonio Prata!
http://guerrilheirodoentardecer.blogspot.com/2011

Fabiano Matos Brito

28 de abril de 2010 – Morre o fundador do guaraná River: "O sepultamento de Clóvis Piassa Marani, fundador do Guaraná River será amanhã, às 8h, no cemitério Jardim das Rosas. Durante o dia de hoje, seu corpo é velado na Igreja Assembléia de Deus, Congregação Peniel, na rua São Francisco, Nova Imperatriz (Entre as ruas Maranhão e Piauí).
Ele implantou o Guaraná River em 1980 com sua fábrica localizada na avenida Dorgival Pinheiro de Sousa. Atualmente, a fábrica funciona em São Luís com outro grupo empresarial no comando. Clóvis Marani morreu hoje por volta das 6h, vítima de câncer.

Gerson Carneiro

E dona Fátima Oliveira me fez alembrar de mais uma: quando eu era criança pequena eu chamava "televisão" de "tânhanhão". Eu chorava e dizia:

"buááááá…. liga a tânhanhão".

É uma de minhas mais doces e belas lembranças de criança pequena.

Ligeovânio

Como imperatrizense prestes a concursar em João Lisboa não tive como não ser tocado…o Maranhão já teve dias melhores…

Dina

chegou a TV na roça e duas comadres assistindo:
-Será que eles aí na TV conseguem ver a gente aqui na sala?
– Não. O vidro é muito grosso…

Almeida Bispo

Hahahahaha! Adorei o texto.
Me lembra o velho Lua cantando: "Cabra danado, que nunca passa em baixo; ô véio macho! Ô véio macho".
Hahahahaha!
Desculpa se há tom meio machista, mas, adoro autenticidade.

pperez

Era o tempo das novelas de rádio na nacional, as aventuras do anjo e de Jeronimo Herói do Sertão e dos programas de auditório do paulo gracindo e manoel barcelos na mayrink veiga.
Na tv espetaculos tonelux ou noites cariocas! De fato, bons tempos…..

ricardo silveira

Belo texto, belos tempos! Minha avó ouvia muito rádio e quando alguém pedia mais detalhes sobre alguma coisa que acabara de dizer ela reforçava o que havia dito, para que não houvesse dúvidas: é verdade sim, o homem do rádio falou, e assim encerrava a conversa. Hoje, quando o homem do rádio fala a gente entra na internet para verificar se é verdade mesmo. E, mesmo assim, haja dúvida …

Omar Streliaev

"Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar, um bom sono pra você e um alegre despertar"…

    Gerson Carneiro

    – Bença, mãiiinha.
    – Bença, paiiinho.

    – Deus tabençôe, meu fí.

Roberto SP

E eu também tô ficando "véio".

Me lembro que quando menino, bem criança ainda, eu adorava esperar a programação da TV Record acabar porque eles tocavam uma música sobre São Paulo que era tão bonita pros meus ouvidos infantis: "São Paulo que não pode adormecer" dizia a letra.

Acho que na TV Cultura se tocava o Hino Nacional quando se encerrava a programação.

E na Globo um locutor de voz grave , mas muito bonita dizendo que "estaremos de volta com nossa programação", ou " estaremos juntos novamente", algo assim.

É, eu sou do tempo em que as TVs saiam do ar…

Tempos duros e difíceis pro Brasil, anos de chumbo, muita violência e morte. Araguaia comendo solto e eu com meus 07 – 08 anos ia dormir quase todo dia com a singela canção em tom de ninar sobre São Paulo que tocava na Record.

Quase quarenta anos depois o Brasil está condenado pela OEA, mas faz de conta que não é com ele.

Gerson Carneiro

Ah, e quando o Cid Moreira dizia "Boa noite" minha vó respondia: Boa noite.

    Fátima Oliveira

    Oi Gerson, vovó também respondia ao boa noite da TV! Até entendo. Era a sua mais dileta companhia.

Gerson Carneiro

Apois tenho uma da minha vó.

Levaram uma televisão para casa dos meus avós. Se não me engano a marca era "colorado". Ao ligar, demorava uns dois minutos "esquentando" até aparecer a imagem. Nas primeiras vezes que a televisão foi ligada, alguém, primeiro espontaneamente, depois de sacanagem mesmo, dizia:

– Olha vó. Vai aparecer a imagem!

Ela, toda inocente, ajoelhava e começava a rezar.

    Elton

    Eram as famosas válvulas eletrônicas, trabalhei com isso. Colorado, marca de TV e Rádio extinta há mais de 30 anos.

    carlos

    Minha esposa foi promotora de vendas da Colorado.
    Ainda tenho aquele chaveiro deles, com a imagem do Pelé, a tal R.Q. (Reserva de Qualidade)…

sousa primo

Fatima, vc me fez recordar alguns mestres da arte do VALE DO JEQUITINHONHA. Norte de Minas Gerais. Na fazenda em moravamos tinha ali , personagens do tipo do senhor BRAULINO, e alguns moradores da redondesa com nomes lindissimos como : LIBORIO FERREIRA, LUDUGERO, ANTONIO SERTANEJO, PEDRINHO JACARE, EPIFANIO eoutros que no momento nao memorizar. E O radio de pilha de 4 faixas, que nas madrugadas era sintonizados na radio capital de sao paulo, e esses cabras viveram muitos anos ,uns morreram com mais de cem anos. Nao esqueco do nervosismo de alguns e as armadilhas praticadas por eles quando iam fazer algum tipo de permuta, aquele que dormisse no ponto era engolido pelo mais sabido. Eram verdadeiras raposas.

edv

Fátima, vc me fez lembrar meu pai, também diabético, que eu flagrava sentado na pracinha perto de casa, com picolés, doces e quetais. E ainda tomava (eu) uma baita bronca se ousasse criticá-lo!
De resto, também semelhante aí ao seu vô, na farra com as crianças (e adultos) e nas saracoteadas.
Será que somos primos?! (rsrs)

Morvan

Fátima, há tempos que eu não ouvia pérolas como "surrão". Lá roça onde eu passei minha infância (a primeira delas, inconclusa) era o artefato mais difícil de produzir e nós moleques o utilizávamos para dormir em cima. Coisas de meninos.
Agora, veja só. Mesmo o seu avô não sendo um cearense, "seo" Braulino, era, na verdade, um grandessíssimo "bonequeiro" (bonequeiro, no cearensês, é quem "apronta", é quem cria "situações"). Você deveria escrever um livro só de "causos" do "seo" Braulino, o bonequreiro.

Abraços,

Morvan, Usuário Linux #433640

ZePovinho

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!Esse aí é da turma do ZePovinho!!

josaphat

Tô mesmo ficando velho. Lembro da antiga tv tupi (ou itacolomi ?) que quando desligava deixava uma imagem de um indiozinho.

    edv

    Acho que somos conterrâneos (oops, contemporâneos), e vc se refere certamente ao fim da programacão, pois quando a gente desligava (se a tv não fosse novinha), ela deixava um pontinho luminoso no centro do "tubo"… que depois de uns 6 meses já tinha que tomar "penicilina"…
    Êita!
    (tô brincanu, meu vô é que me contô, hehe…)

    Morvan

    Bem lembrado, Carlos.
    O indiozinho servia para ajuste de altura e largura. Naquele tempo, os sincronismos das duas grandezas era realizado manualmente, normalmente pelos técnicos.
    Depois apareceram os Geradores de Padrões, que facilitaram bastante a vida do técnico, pois traziam gerador de sincronismos, linhas, quadrados, padrões de cores (posteriormente à tevê P & B, claro) e de áudio, para ajuste fino do áudio da tevê.
    EDV, o pontinho luminoso, no centro do tubo, era um defeito advindo do esgotamento do capacitor de apagamento. Os capacitores eletrolíticos, ainda hoje (em placas-mãe, por exemplo) têm o problema de esgotamento de sua capacitância. O técnico tinha, no caso dos televisores, de procurar o capacitor
    de apagamento e substituí-lo. Pronto, resolvido. Eu mesmo ganhei algum dinheiro com este defeito esdrúxulo… ainda no tempo da válvula, acredite.
    E pensar que, hoje, num simples chip se tem todos os circuitos, ali, como o próprio nome diz, integrados, fico perguntando: porque não avançamos também, tanto, no aspecto social?
    Abraços,

    Morvan, Usuário Linux #433640

    Carlos

    Josaphat, lembra que a cabeça do indiozinho ficava dentro de um circulo parecido com um alvo?
    Pois é, aquele "alvo" tinha uma razão de ser:
    Servia para regular a imagem na altura e na largura, que naquele tempo era feito manualmente.
    O objetivo era deixar o "alvo" o mais redondo possível…

    Elton

    Exatamente Josaphat, lembro desse slide que era colocado quando a programação se encerrava. lembro-me que afora a programação ao vivo, tudo chegava em Curitiba com semanas de defasagem em relação aos grandes centros (Rio e São Paulo) onde as novelas dos anos 60 eram produzidas. E em preto e branco, o que é melhor!!!

    Heitor Rodrigues

    Minha mãe me dizia que era o curumim. Garotinho, moleque, derivado do tupi curumi.

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