Tanya Harmer: No Chile, Médici fez o serviço sujo para Washington

Tempo de leitura: 5 min

Don’t do what Allende did

Greg Grandin, em resenha do livro Allende’s Chile and the Inter-american Cold War [O Chile de Allende e a Guerra Fria Interamericana], de Tanya Harmer, no London Review of Books

[Trechos]

O programa doméstico de [Salvador, presidente do Chile] Allende em si era problema suficiente para Washington, mas foi sua política externa que mais alarmou [Henry] Kissinger, então assessor de segurança nacional de [Richard] Nixon. Pobre, remoto, esparsamente habitado e com um formato estranho, o Chile, Kissinger uma vez brincou, era um dardo apontado para o coração da Antártica. Com a eleição de Allende a tentativa de Kissinger de dividir o mundo entre esferas estáveis de influência ficou ameaçada. O Chile restabeleceu relações com Cuba e trabalhou para livrar a Organização dos Estados Americanos do domínio dos Estados Unidos. Allende logo se tornou líder do desafio econômico do Terceiro Mundo ao Primeiro, através de organizações como o G77, o Movimento Não-Alinhado e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento.

Estes grupos fizeram propostas específicas — eles queriam preços fixos para as commodities do Terceiro Mundo, um banco mundial de energia capitalizado pelos países ricos –, mas foi um princípio moral que dirigiu suas demandas: o Ocidente tinha com eles uma dívida, a ser paga através da transferência direta de capital, tecnologia e propriedade intelectual, até que a economia global fosse reequilibrada.

O princípio seria testado por Allende na questão do pagamento por nacionalizações de interesses mineradores dos Estados Unidos. Desde que o México assumiu os bens da Standard Oil nos anos 30, Washington tinha aceitado o direito das nações de expropriar propriedade estrangeira, desde que restituição satisfatória fosse paga. Mas o governo de Allende insistiu que ‘lucros excessivos’ — qualquer coisa acima de 12% do valor da companhia — deveriam ser deduzidos da compensação. O Chile assumiu as operações das companhias mineradoras Anaconda e Kennecott e, quando os valores foram calculados, ainda apresentou [às empresas] faturas vencidas a pagar.

Os aplausos em pé que Allende recebeu, principalmente de delegados do Terceiro Mundo, na Assembleia Geral da ONU de 1972, quando ele justificou o conceito de excesso de lucro, foi um turning point na história dos direitos de propriedade internacionais. Washington decidiu que sua tolerância ao nacionalismo econômico do Terceiro Mundo tinha durado muito. As nacionalizações do Chile, o secretário do Tesouro de Nixon, John Connally, disse, ameaçavam provocar uma bola de neve de expropriações similares na região, com as quais Washington não poderia mais lidar caso a caso.

Havia a metafísica do ódio a Allende, que foi além das questões econômicas e de segurança nacional. “Nos anos seguintes”, Kissinger escreveu em 1968, “as mais profundas ameaças à política estadunidense não serão físicas, mas morais e psicológicas”. E então chegou Allende, com seus óculos de aro grosso e parecendo bem vivido para um revolucionário. Um dedicado marxista que também era um dedicado democrata, ele não se encaixava no mundo bipolar de Kissinger. Ele não era cru, nem cozido.

“Acho que ninguém do governo [Nixon] entendeu o quanto Kissinger era ideológico em relação ao Chile”, um assessor do Conselho de Segurança Nacional declarou certa feita. “Ninguém entendeu totalmente o quanto Henry [Kissinger] via Allende como uma ameaça muito mais séria que [Fidel] Castro. Se a América Latina se desvencilhasse, nunca aconteceria por causa de Castro. Allende era um exemplo vivo de reforma social democrática na América Latina. Todos os tipos de cataclismas aconteceram, mas Kissinger temia o Chile”.

[O repórter] Seymour Hersh, baseado numa conversa com outro integrante do Conselho de Segurança Nacional, escreveu que o que Kissinger mais temia sobre Allende não é que ele ganhasse a presidência, mas que no final do mandato o processo político funcionasse e ele, Allende, fosse derrotado. O socialismo, e menos ainda o marxismo, nunca poderia parecer compatível com democracia eleitoral.

[…]

Tanya Harmer, em O Chile de Allende e a Guerra Fria Interamericana deixa de lado argumentos sobre quem foi culpado por determinados episódios da Guerra Fria. Em vez disso, ela considera o contexto amplo. No caso do Chile, significa examinar as ações revolucionárias de Cuba e contrarrevolucionárias do Brasil, tanto quanto os chilenos, nos eventos que levaram à queda de Allende. Harmer visitou numerosos arquivos em vários países e conduziu entrevistas com vários jogadores-chave. No entanto, não importa quanto ela afaste as lentes as ações dos homens da Casa Branca continuam condenáveis.

O timing da queda de Allende foi determinado pelos eventos no Chile, mas a ‘pequena vantagem’ que Washington deu aos oponentes dele, como o chefe da diplomacia de Nixon na região colocou, foi crítica. De acordo com Harmer, um “amplo plano de desestabilização” foi colocado em andamento antes da posse de Allende e não terminou enquanto ele não morreu. Washington financiou jornais anti-Allende, deu dinheiro através de terceiros para sindicatos de oposição, aumentou a ajuda para os militares, sabotou a economia e promoveu ações clandestinas “para dividir e enfraquecer” a coalizão Unidade Popular [de Allende], além de financiar através do Partido Nacional, conservador, a criação do grupo paramilitar Patria y Libertad, um esquadrão da morte que rapidamente ‘escapou do controle’.

Kissinger não planejava os eventos no Chile. Não precisava: Harmer demonstra que o regime militar direitista do Brasil, em si um produto de um golpe apoiado pelos Estados Unidos, tomou a iniciativa. O presidente do Brasil, general Emílio Garrastazu Médici, foi pessoalmente convencido por Nixon em uma visita a Washington em dezembro de 1971. “Há muitas coisas”, Nixon disse ao general, “que o Brasil como um país sulamericano pode fazer que os Estados Unidos não podem”. A atual presidente do Brasil, Dilma Rousseff, passou parte dos três anos em que Allende estava no poder na cadeia, inclusive um período de 22 dias quando foi torturada com choques elétricos — uma das coisas que os militares brasileiros podiam fazer que, naqueles dias, os Estados Unidos não podiam.

Algumas pessoas argumentam, como [o historiador Mark] Falcoff, que a Casa Branca queria um governo interino liberal no Chile e não teria como prever a brutalidade do regime de Pinochet. Harmer enfatiza que Washington “queria um regime autoritário modelado na ditadura brasileira e uma guerra contra a esquerda como único remédio para o dano cometido pela presidência de Allende”. Washington estava preocupada com o fato de que “os líderes militares chilenos não são suficientemente brasileiros, nem em sua determinação para reprimir a esquerda nem em seu sentido de missão ideológica”. Não precisava ter se preocupado. O governo da Argentina caiu, derrubado pelos militares, três anos depois do golpe chileno e nas duas décadas seguintes a região se tornou sinônimo de terror político.

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Comentários

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Matt

“Algumas pessoas argumentam, como [o historiador Mark] Falcoff, que a Casa Branca queria um governo interino liberal no Chile e não teria como prever a brutalidade do regime de Pinochet.”
-É claro, minha gente! Basta observar com quanta gentileza os ianques agiram no
Vitnã! Basta olhar quandos “estadistas” bonodosos, como Idi Amin Dada, Francisco Franco e Suharto, eles apoiaram!

“Harmer enfatiza que Washington “queria um regime autoritário modelado na ditadura brasileira e uma guerra contra a esquerda como único remédio para o dano cometido pela presidência de Allende”.”
-Ué, um “regime autoritário modelado na ditadura brasileira” é o que foi instalado no Chile. Se o Brasil tivesse o nível de mobilização política em 1964 que o Chile possuía em 1973, a escala da repressão política seria proporcionalmente igual. Assim como a corrupção foi proporcionalmente igual*! Lembremos ainda que a ditadura militar brasileira criou uma rede de esquadrões da morte para lidar com um problema que ela própria ajudou a agravar: a pequena criminalidade urbana motivada pela absoluta exclusão social, além de exterminar milhares de índios e camponeses que estavam “no caminho” das obras faraônicas.

* Num calculo simplista, estimando que a duração das duas ditaduras era aproximadamente igual e a população brasileira era mais ou menos 9 vezes a chilena, 30 mil mortos e 1 milhão de torturados por razões políticas.

Ferreira

Assistam no youtube – “O Dia que durou 21 anos”
Vejam como os Estados Unidos agiram para criar as condições para o golpe de 1964.
Com o pretexto ridículo que o Brasil iria se tornar comunista no gov Jango, os americanos em conjunto com traidores da pátria: elite-empresários, latifundiários,igreja católica,imprens­­­a-PIG/Globo­­,políticos vendidos, ignorantes da direita,etc…Derrubaram um gov voltado para a justica social e desenvolvimento nacional.
Os USA enviaram uma esquadra naval para apoiar e invadir o Brasil caso houvesse resistencia contra o Golpe.

rodrigo

Ainda a respeito do Chile, é sempre bom ter uma noção a mais do que acontece lá, afinal foi transformado no principal laboratório de política neoliberal do mundo.

https://www.youtube.com/watch?v=zViYE7A4JBE

rodrigo

(…) a Casa Branca queria um governo interino liberal no Chile e não teria como prever a brutalidade do regime de Pinochet. (…)

Meu nome é Rodrigo, mas podem me chamar de Pollyanna…

A propósito, e pegando um gancho no comentário do Mardones, se a gente tem medo fica imobilizado, não faz nada mesmo. (mas) A gente só tem medo daquilo que não conhece. #ficaadica

Urbano

O Brasil nas mãos dos trevosos só foi o que deu: ser capanga dos ianques. A operação condor foi um dos exemplos. O último serviçal foi o fred henrique flintstones salieri, o danoso. Os cumpinchas deste até os sapatos tiraram para entrar na casa deles; e nem pensem que foi a branca, porque não foi. Foi no aeroporto mesmo.

    Fabio Passos

    Há os capachos que não tem nenhum pudor…

    Mas mesmo os enrustidos já não enganam ninguém. rsrs

    rodrigo

    Fábio, essa aqui expressa um pouco melhor o que foi realmente a ditadura militar chilena em termos sociais –

    Fabio Passos

    Impressionante.

Francisco

Não podemos fazer cinema que retrate isso pois a maior parte da produção cinematográfica nacional tem que passar pela Globo e pelas distribuidoras gringas. Não podemos passar documentários sobre isso na TV por que as TVs brasileiras não passam programação nativa, afora telejornais (SEUS telejornais) e novelas (SUAS telenovelas…).

O que podemos fazer? Tomar conheimento, sentar na beira da calçada e chorar. O PT não plebiscita uma Lei de Mídia. Dez anos após os torturados estarem no poder, nem mesmo o documentário de Silvio Tendler, “Jango” passou na TV aberta. Eu não aceito que passe às duas três horas da madrugada: tem que passar no horário do Faustão, do Gugu ou de outro programa parvo.

Quando assistiremos em TV aberta “Muito além do cidadão Kane”? Porque tenho a sensação de que o povão tem hoje o mesmo acesso à informação que tinha durante a diatdura? Internet, aus~encia de censura formal, tudo isso se traduz em mais informação, mas de modo algum, em melhor informação.

Enquanto isso a Rede Globo espreme lágrimas (e tenta desesperadamente nos fazer chorar por estadunidenses irresponsáveis que elegeram Bush e suas guerras sórdidas) pelo “Onze de Setembro” das torres gêmeas.

Onze de setembro de 1973, o assassinato de Salvador Allende ainda é um imenso zero na cabeça dos latinos. Choremos pelo World Trade Center…

Fabio Passos

Os ianques são pródigos em destruir a democracia e dar golpes de Estado.
Os eua são uma ditadura que age em escala global.

Todas as nações Americanas sofreram muito com a interferência direta dos eua ou com sua associação a “elites” locais inescrupulosas.

O Socialismo de Allende era um exemplo que washington não podia permitir prosperar.

Os açougueiros que se auto-declaram “liberais” mostraram seu completo desprezo pela democracia e pela vida humana.

Ainda há entreguistas na América do Sul que sentem saudades das ditaduras patrocinadas pelos eua.
Já passou da hora de um acerto de contas definitivo com estes crápulas covardes.

    Ferreira

    Apoio total !

    O império yanque está caindo, vamos derrubá-lo de vez.

Julio Silveira

No fundo, o texto faz um alerta aos cidadãos desavisados, que costumam viver no mundo das liberdades fictícias, crendo piamente serem livres para pensar, enquanto ficam prescrutando havidamente impávidos os programas midiáticos dos sócios do terror, nos diversos veículos que lhes permitem viajar a mais de 300 quilômetros por hora. Fiquem alertas ao paredão.

Mardones Ferreira

As marcas desse período ainda são presentes na região. Os EUA seguem sem deixar os países da AL implementarem mudanças democráicas. Para isso, financiam partidos, sindicatos, empresas e cia ltda. Mesmo sem o PT esboçar qualquer sinal de que vá tentar construir uma democracia legítima. Por isso, muitos dizem que o PT deixou de lado o seu programa de governo e resolver apenas gerir o neoliberalismo à moda brasileira. A ameaça a qualqer governo que tente colocar o seu país fora dos limites do interesse dos EUA segue viva e imobilizande a esquerda brasileira.

Eutímio Pimentel

Tenho esperança, que um dia, a história vai cobrar a fatura dessa nação de bandidos, mercenários e usurpadores das riquezas dos outros povos. Bem como,as atrocidades cometidas em nome da “liberdade”. Pois como eu sempre falo, esse país é a besta do apocalipse, que vai mergulhar a humanidade numa hecatombe sem precedentes em nossa história (tomara que não!).

Elias

-São Paulo, terça-feria, 11 de setembro de 1973-
Toda nua / olhos grandes / de manhã ela saiu / era um dia de semana de setembro / eu me lembro que era um menino / e ela me pegou e me levou com ela / e a multidão corria e gritava / olha a louca! / pega ela! / e eu furava seus olhos / puxava seus cabelos / e ela corria / e a multidão se distanciava / seis horas da tarde eu estava internado em seu manicômio / e o que ela pedia / eu fazia logo / morrendo com todos / La Moneda era setembro / Santiago era setembro / o Chile era setembro / a América…setembro… (letra de uma canção que o jovem Elias nunca gravou)

Tiago Tobias

Aterrador. E conheço gente que diz que a ditadura brasileira, perto das outras ditaduras do continente, foi suave, com uns 300 e poucos mortos.

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