Mauro Santayana: A frustrada desforra paulista

Tempo de leitura: 4 min

por Mauro Santayana, no JBOnline, sugerido por Marco Aurelio

Todos os historiadores deveriam partir da advertência de Spinoza e buscar entender a realidade, antes de exercer a lisonja ou o ódio. Há oitenta anos, os paulistas se levantavam contra o governo Vargas, sob a bandeira da constitucionalização do país. Ora, o pretexto era frágil, uma vez que, em 14 de maio – três meses antes dessa insurreição armada – o governo provisório emitira o Decreto 21.402, nomeando  comissão de juristas, encarregada de elaborar anteprojeto de Constituição e marcando a data de 3 de maio do ano seguinte para a eleição dos delegados constituintes. O prazo de um ano era razoável, porque os membros da comissão necessitavam de tempo hábil para discutir a nova ordem jurídica, depois da ruptura da Revolução de 30.

Não era bem a falta de uma Constituição que estimulara São Paulo à rebelião, que vinha sendo preparada desde a vitória militar da Revolução Liberal, em 3 de outubro de 1930. O que açulava os paulistas era a desejada revanche contra a sua derrota. As elites de São Paulo, todas vindas das oligarquias rurais, não podiam engolir a capitulação militar de Washington Luís diante de tropas mineiras, nordestinas e gaúchas. Os altos quatrocentões, apoiados por vitoriosos imigrantes, que também viviam da exportação de café, sentiam-se como  junkers prussianos, acossados pela ralé de bárbaros. Apesar do relativo desenvolvimento da indústria manufatureira, promovido pelos imigrantes, as oligarquias rurais não queriam o desenvolvimento industrial do país, que as deslocaria de seu poder secular.

O sentimento de superioridade, que levara Washington Luís a insistir na continuidade de São Paulo no comando da República, induzira muitos dos chefes do movimento a pensar na independência do Estado, se sua hegemonia econômica não se confirmasse no comando político do país. Essa era uma das razões, mas havia outras, e mais importantes.

A ruptura da República Velha não fora  simples mudança de homens ou de partidos no poder, e muito menos  coligação de estados pobres, ressentidos contra a pujança econômica de São Paulo.  Getúlio, na plataforma  da Aliança Liberal, lida em janeiro de 1930, na Esplanada dos Ministérios, fora claro. O Brasil não poderia continuar um país vazio, só ocupado, desde o descobrimento, no litoral e em escassas manchas humanas no resto do território. A Guerra do Paraguai já nos alertara para a necessidade do intensivo povoamento do Centro-Oeste. O Brasil precisava sair do casulo conservador e dar empregos e vida digna a seu povo.

O confronto se fazia entre o pensamento renovador e a reação conservadora. Tanto é assim que, em Minas, o partido dos aliados das oligarquias paulistas se identificava, sem embuços, como sendo a Concentração Conservadora. Nomes importantes de Minas, conduzidos por motivos diferentes, estiveram com São Paulo, não só em 30, como em 32,  entre outros Artur Bernardes e Fernando Mello Viana. E no Rio Grande do Sul, também. No caso, mesclavam-se os interesses  pessoais e as questões políticas internas.

Tanto foi assim que os primeiros tiros da Revolução de 30 foram disparados em 6 de fevereiro de 1930, em  Montes Claros – terra de Darci Ribeiro, é bom anotar.  O tiroteio começou quando uma caravana conservadora, chefiada pelo então vice-presidente da República, o mineiro Mello Viana, passou diante da casa de João Alves e sua mulher, dona Tiburtina, e houve os disparos. A versão mais conhecida é a de que o primeiro tiro partiu do grupo provocador, e foi respondido pelos  partidários da Aliança Liberal, que se encontravam no sobrado. Ali morreram seis pessoas e Mello Viana escapou por pouco – uma bala atingiu-lhe levemente o pescoço.

Getúlio pretendia a industrialização do país e justiça social para com os trabalhadores. O mundo começava a mudar, depois da Revolução de Outubro, na Rússia, e os desafios da Depressão iniciada meses antes, com a queda da Bolsa em Nova Iorque. Em 1930, no governo do Estado de Nova Iorque, Roosevelt iniciaria a sua política social e econômica que o levaria em 1932, à presidência e ao New Deal. Roosevelt e Getúlio estavam na mesma estrada. Em contraponto à política de solidariedade para com os trabalhadores, Washington Luís definia a sua posição, ao afirmar que “a questão social é apenas um caso de polícia”.

Infelizmente, ao que parece, os oligarcas paulistas – e seus representantes na política atual – não entenderam até hoje as razões dos revolucionários de 30. Continuam com a mesma posição que tiveram em julho de 1932. O ódio contra Getúlio e o seu governo – que, pela primeira vez via o povo como protagonista da História –  permanece até hoje. Não há, em São Paulo, uma ruela qualquer com o nome do grande presidente. Não é por mero exercício retórico que Fernando Henrique Cardoso decretou, sem consegui-lo, “o fim da era Vargas”. Foi por convicção.

Não fazemos a apologia de 1932, nem lhe temos ódio, mas procuramos entender o movimento dos revolucionários paulistas como um gesto que, tendo sido de arrogância contra o Brasil (não nos esqueçamos de seu lema, non dvcor, dvco), foi importante para o desenvolvimento político e econômico do nosso país. Sem seu movimento, não teríamos a consolidação revolucionária do governo provisório, nem o projeto nacional de Vargas, que promoveu a industrialização do país, a participação do Brasil na Guerra e o fim do mito conformista de que deveríamos ser sempre um país essencialmente agrícola, eterno exportador de café e açúcar.

Ora, São Paulo foi o Estado mais beneficiado com a política industrial de Vargas. Como disse Delfim Neto ao jornalista Leonardo Attuch, São Paulo não perdoa a Getúlio o bem que ele fez a São Paulo.

E como a História é feita pelos homens e para os homens, não teríamos, sem a guerra paulista,  tido a carreira política de Juscelino, que, sucedendo a Vargas, deu o grande salto para a afirmação do Brasil no mundo. Como se sabe, foi combatendo os paulistas, no Túnel da Mantiqueira, que o capitão médico se tornou político.

E tampouco nos devemos esquecer que os paulistas, derrotados em 32, afinal, ganharam, em 64, quando muitos de seus empresários, reunidos no IEPES, aliaram-se aos militares para derrubar Jango. Eles se mantiveram no poder, diretamente ou pelos seus delegados, até a restauração democrática de 1985.

Quando a repressão se exacerbou em São Paulo – e foi exercida pelo Doi-Codi e pela Oban (Operação Bandeirantes),  financiada por grande parte daquele grupo de empresários – muitos dos que tombaram não tiveram o privilégio de cair em pleno combate, como o tiveram os mortos em 30 e em 32. Só Deus e os torturadores sabem como eles pereceram.

O povo paulista começa a desvincular-se das elites, e a autonomia de sua ação política, na solidariedade com os brasileiros de todas as regiões, é a argamassa necessária à autêntica coesão nacional.

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Comentários

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claret

Um golpe de Estado contra um presidente eleito constitucionalmente deveria falar mais alto do que qualquer entendimento contrário destinado a explicar uma ditadura fascista que então se instalava.Modernizar o pais também foi o mote da revolução de 1964, não?
Direitos trabalhistas também era aquilo a que se propunham as ditaduras comunistas, aliás, era todo poder ao operariado, não?
Seriam ainda as oligarquias Mineiras e Gaúchas, além das Nordestinas,”progressistas” do que as Paulistas?
Estariam aqueles que se mostram indignados com as manifestações dos Paulistas, lembrando 1932, saudosos de uma Ditadura?

FJP

Caro Azenha,
Congratulo a publicação deste e de vários outros textos do Satayana. Beiram a perfeição, a cada parágrafo uma aula, a única ressalva que faço a eles é o fato de serem curtos. Vida longa ao Santayana!
Por outro lado e com todo o respeito que merecem os bons paulistas e paulistanos, mas este culto ao 9 de julho cheira a mofo.
1 abraço

Diogo Costa

A defesa constante, permanente e ignorante da “Revolução de 1932” expõe ao ridículo àqueles que teimam em brigar com os fatos para exaltar seu bairrismo tosco e regional. Uma das mentiras mais rotundas que se contam até hoje é dizer que a “Revolução” era a favor da Constituição e contra o despotismo de Getúlio Vargas. Essa mentira rotunda e canhestra tem de ser devidamente desmascarada, para o bem da historiografia brasileira, para o bem da verdade e daqueles que não se deixam enganar.

A “Revolução Constitucionalista” irrompeu em 09 de julho de 1932 reivindicando eleições livres, democracia e uma nova Constituição. O que os defensores da farsa rocambolesca protagonizada pela oligarquia paulista e seus jornalões da época omitem é que Getúlio Vargas promulgou a nova lei eleitoral em fevereiro de 1932 e já havia marcado em 14 de maio de 1932 a data das eleições que originariam a Assembléia Nacional Constituinte. Essas eleições ocorreriam em 03 de maio de 1933. Portanto, 02 meses antes da irrupção da intentona da oligarquia paulista, o Brasil inteiro já conhecia a data das eleições e se preparava para eleger seus representantes na Constituinte que seria formada em maio de 33, o que era uma das maiores reivindicações do baronato da terra da garoa.

Logo, vê-se que a desculpa esfarrapada da oligarquia paulista não resiste ao mais simples exame dos fatos históricos. Com ou sem a “Revolução Constitucionalista” de 32, haveriam eleições, haveria democracia, haveria Assembléia Nacional Constituinte e haveria a normalização do Estado Democrático de Direito no país. A oligarquia mente até hoje quando diz ou atribui à sua fracassada Intentona o sucesso das eleições e a construção de uma nova Constituição. Na verdade, a oligarquia paulista, que fora desalojada do poder por Getúlio Vargas, simplesmente não admitia o fim do liberal regime da República do Café com Leite e queria recuperar de qualquer jeito o quinhão de poder que perdera com a Revolução de 1930 chefiada por Vargas.

É preciso recuperar esses fatos históricos, não é possível que em pleno século XXI tenhamos que conviver com a mentira diversionista que contam a respeito da “Revolução Constitucionalista”. Essa fracassada revolta não foi a origem da Constituição de 1934, muito antes pelo contrário! Foi apenas o último suspiro de uma oligarquia desalojada do poder e saudosa da moribunda República do Café com Leite e dos não menos moribundos currais eleitorais fraudulentos que foram destruídos por Getúlio Vargas a partir da reforma do Código Eleitoral.

Carlos Malaquias

“Roosevelt e Getúlio estavam na mesma estrada”.

Acho que a estrada de Getúlio estava do outro lado do Atlântico, na Itália fascista, para ser mais preciso.

O corporativismo sindical e a tentativa de tutelar os trabalhadores, a proibição do PCB e perseguição a seus membros, todo o incentivo à indústria, a propaganda nacionalista e o culto à personalidade e, é claro, o Golpe de 1937 e a subsequente Polaca são características mais do que claras da inspiração fascista de Vargas.

Em algum comentário noutro post alguém já disse que Vargas não era um bom modelo para a esquerda atual. Concordo.

Evidentemente o projeto agrário-exportador da então São Paulo também não é.

NON DUCOR DUCO

1932! sim, em nome da mudança por fim como você mesmo diz a força do trabalho operário veio de Sampa e não do resto.

    Roberto Locatelli

    Esse é o pensamento da direita paulista. Fora de São Paulo só existe “o resto”. É por esse pensamento que São Paulo está se sucateando.

geniberto paiva campos

Considero este texto do Santayana a chave essencial para entender a esfinge chamada São Paulo. Depois de Caetano Veloso com Sampa” – um hino de amor do baiano aos paulistas, por vezes escorregando num tom bajulatório, basta prestar atenção na letra – retorna, mais uma vez, a necessidade do Brasil “traduzir” São Paulo. Que está sempre a nos surpreender, pela sua inegável pujança desenvolvimentista e pela visível pobreza nas artes da política. Mais uma vez, Santayana, com seu talento de escriba e incrível capacidade de síntese, renova, nesse tremendo desafio que é entender o modo paulista de fazer política.
Às vezes, preferimos ser devorados pela “deselegãncia discreta das suas meninas”.. Esse Caetano…

Jotace

Mais um excelente texto do Mauro Santayana e que o Viomundo traz para todos nós como uma colaboração valiosa para o conhecimento da verdadeira história do Brasil. Como sempre, o articulista aclara, e de forma insofismável, acontecimentos aparentemente controversos como é o caso da tão explorada ‘revolução constitucionalista’. É admirável que, tantos anos decorridos, em São Paulo ainda se comemore algo que nada mais foi do que o fruto de uma ambição sem sentido dos escravocratas e oligarcas, os ‘barões’ do café e da cana de açúcar. Jotace

Fabio Passos

Homenagens a uma tentativa frustrada de impedir o desenvolvimento do Brasil… não é por outro motivo que são conhecidos como a pior “elite” do mundo.

Hildermes José Medeiros

A retrograda elite paulista, baluarte do conservadorismo no Brasil, não desiste de mostrar seu caráter, todo Nove de Julho, comemorando sua derrota em um embate com as forças no poder, originárias da Revolução de 30 e lideradas por Getúlio Vargas, que surgiram exatamente para romper com o imobilismo da economia agroexportadora com base no café, defendida por cafeicultores e políticos paulistas e mineiros, que já se estendia ao Rio de Janeiro. Desde então, sempre estiveram ao lado do conservadorismo autoritário, contra qualquer sinal de trabalhismo que possa surgir em nossa política e prontos a enfrentá-lo, não como um adversário com quem vão debater ideias e propostas, típicas dos regimes democráticos, mas como inimigos dos mais odiados. Usam de todas as armas: o embuste, a mentira, atos para corromper e denegrir imagens, indo até a crimes de sangue para afastar esses inimigos. Nessa luta sem quartéis, inclusive no campo ideológico, desde sempre contam com a mídia para encaminhar e dar cobertura às suas ações. Pelos apoios recebidos e resultados obtidos (a derrota o principal), o Nove de Julho foi muito mais uma tentativa separatista da elite paulista, sufocada pela Federação, do que movimento constitucionalista como querem que todos creiam. Já se passaram oitenta anos chocando esse nauseabundo ovo de serpente. É a chama que procuram não deixar morrer, que parece dizer ao resto do país que estão alertas e prontos a se opor, inclusive com armas (há até um simulacro de desfile de natureza militar). É o ninho onde se encontram as forças golpistas e contrárias a tudo que possa cheirar a povo. Não percebem que os ovos já goraram, que o país que os derrotou em 1932, cresceu e se agigantou em várias direções e sentidos, caminhando celeremente para ser de fato e de direito uma das maiores democracias do mundo, onde o freio conservador não tem mais vez. Chega de gastar esforços e dinheiro em ato, hoje, tão sem sentido, até mesmo para o povo paulistano. É hora de São Paulo ser tão somente o maior e mais importante Estado brasileiro, sem hegemonias, sendo, como de fato é, o principal vagão, cuja locomotiva é a nossa sui generis Federação, onde os Estados são individualmente muito frágeis, concentrando-se toda a força do país na União, força que nos tem mantido unidos na direção do atingimento de nossa grandeza, em todas as dimensões possíveis.

josé maria de souza

Um texto claro, sem rebuscamento, sem filosofia barata, direto, esclarecedor.
josé maria de souza

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