Maurício Caleiro: A falência da Espanha e seus disfarces

Tempo de leitura: 4 min

por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes

A Espanha quebrou, faliu. Este é o fato, a terrível realidade que se esconde por detrás de uma operação discursiva que lança mão de termos amenos, humanistas e solidários como “ajuda”, “resgate” e “operação de salvamento”.

Trata-se, na verdade, de uma intervenção na economia e na soberania espanholas, para benefício do mercado financeiro e com duras consequências para a população.

Rajoy questionado

Tendo imposto suas demandas ao governo do conservador Mariano Rajoy sob sua relutância apenas aparente, a batalha que os arautos do neoliberalismo ora travam é de ordem discursiva: em primeiro lugar, trata-se de convencer os espanhóis que é não apenas aceitável, mas para seu próprio bem desejável que paguem, com carestia, desemprego, cortes nos salários, nas aposentadorias e no acesso a saúde e educação – em suma, com o que resta do Estado de bem-estar social à europeia – as dezenas (talvez centenas) de bilhões de euros que serão utilizadas para tirar as instituições financeiras do buraco por elas mesmas cavado.

A julgar pelas reportagens na imprensa espanhola, agora está ficando claro para muitos de seus ingênuos eleitores que Rajoy – que há dez dias declarou taxativamente que não haveria resgate aos bancos – mentiu. E, a bem da verdade, continua a fazê-lo, já que é lugar-comum entre economistas que cem bilhões de euros são um mero paliativo, e que o setor financeiro, com as cartas na mão, demandará de quatro a oito vezes esse valor para cobrir seus rombos – com a imposição dos cortes sociais correspondentes.

Conseqüências psicológicas

“ A intervenção é um golpe psicológico que constitui um marco na história de nossas relações com a Europa. Em um país onde a identidade nacional e os sentimentos de autoestima coletiva têm estado sempre tão estreitamente vinculados aos feitos alcançados no âmbito europeu, custa crer que tenhamos chegado a este ponto. Entender como e por quê e o que ocorrerá a partir de agora mostra-se imprescindível”, aquiesce uma voz favorável ao “resgate”.

Desse quadro decorre um segundo movimento da citada operação discursiva, desta feita para salvaguardar o orgulho nacional, que a menção à condição de quarta economia da Europa costuma alimentar. Nela pontifica, de novo, a promoção do contorcionismo verbal à maneira do 1984, de Orwell, com a adoção de uma novilíngua em que a tragédia torna-se pacto social; a bancarrota, ajuste mercadológico; a humilhação à soberania nacional, solução negociada com os parceiros de bloco.

Nós, latino-americanos, já vimos algumas vezes esse filme, porém em versões em preto e branco, do final do século passado. Trata-se, com o perdão pela redundância, de uma chanchada de má qualidade, protagonizada por canastrões, com um roteiro que tem sérios problemas de verossimilhança e, pior, não tem final feliz: os vilões vencem.

Espanha x Argentina

Essa autorreferência ao nosso continente nos leva ao terceiro movimento da estratégia discursiva neoliberal acima aludida, desta feita de caráter eurocêntrico e, naturalmente, pró-mercado, facilmente identificável no discurso da mídia brasileira relativo à crise espanhola: “Quando o resgate era de pais da periferia, a mídia chamava de falência, quebra. Quando é no centro: resgate, apoio, empréstimo. Ajuda”, resume o professor Emir Sader, em seu Twitter.

Convido os(as) leitores(as) a compararem o tratamento que essa mesma mídia deu ao default argentino – que se recusou a seguir as imposições do sistema financeiro internacional – e o enfoque que ora dispensa à quebra da Espanha – que segue à risca o que manda a Troika. Recomenda-se, ainda, daqui a algum tempo, quando tivermos elementos sobre os desdobramentos da obediência espanhola à banca, que também se leve em conta, nessa comparação, a situação do país ibérico e a da Argentina – que, malgrado todas as ameaças de danação eterna a que fatalmente estava condenada por ousar enfrentar a cartolagem, tem apresentado, sob um governo de centro-esquerda, um desempenho econômico superlativo em meio à crise.

Confusão conceitual

A persistência do neoliberalismo como modelo orientador das políticas econômicas da Zona do Euro – agravadas por sua prescrição como antídoto que só faz agravar sua maior crise, como se vê na Espanha – nos fornece a medida do quanto a constituição de blocos econômicos transnacionais, apregoada como imprescindível à sobrevivência na globalização, acabou por constituir-se em um fator determinante na submissão dos estados nacionais aos ditames do mercado financeiro.

No âmago de tal problema está uma confusão conceitual, intencionalmente inoculada pelos arautos do neoliberalismo quando da ascensão histórica deste, ao longo dos anos 80, sob os  os eflúvios de Thatcher e Reagan: a concepção de globalização e neoliberalismo como termos indissociáveis e, em larga medida, intercambiáveis, marcados por uma relação pela qual a primeira, por seu caráter estruturante, imporia a adoção de políticas econômicas nos moldes ditados pelo segundo, sob a ameaça de expulsão da então chamada “nova ordem mundial” e decorrente aniquilamento do país enquanto ente autônomo.

Essa confusão e essa crença são um lugar-comum na reflexão teórica sobre o período, levada a cabo inclusive por pensadores que continuam na linha de frente da crítica socioeconômica. É notável, no entanto, que tanto intelectuais brasileiros como Octávio Ianni e Milton Santos quanto uma certa tendência do pensamento franco-europeu agrupada em torno do Le Monde Diplomatique tenham desde sempre, em sua maioria, recusado a aferrar-se ao determinismo teórico do período.

O retorno da soberania

Este, embora falho, é até certo ponto compreensível, posto que tardiamente desmentido factualmente, Pois, a rigor, a constatação de que a morte do Estado nacional era uma balela e que havia possibilidade de sobreviver – com crescimento, inclusão social e um Estado fortalecido, atuante e que conservasse um bom grau de independência a despeito da interdependência da economia global– só tem lugar com a ascensão e o sucesso das administrações de Lula, Chávez, Kirchner, Morales, Corea, entre outros.

Assim, ainda que devamos ter muito claros a persistência insidiosa do poder neoliberal sobre tais administrações, e os limites e eventuais equívocos e desacertos destas – como a insensibilidade do governo de Dilma Rousseff para com as demandas do funcionalismo público ora fornece um dentre tantos exemplos possíveis -, é preciso atentar com limpidez para as conquistas e as possibilidades propiciadas pelo realinhamento político-ideológico promovido pela democracia brasileira na última década -e lutar para efetivá-las e ampliá-las.

O povo espanhol, por sua vez, já promete voltar a tomar as ruas e a Puerta del Sol, em protesto. Suerte.

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Comentários

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Jotace

FALÊNCIA (DISFARÇADA) DA ESPANHA (1)
Face a tão erudito artigo e aos não menos apurados comentários que se seguiram, poder-se-ia endossar a todos, não fosse um aspecto que eu diria fundamental e que deixou de ser abordado: a exploração desenfreada de toda a América Latina pelas grandes empresas espanholas que nada investem de fato nos países que elas saqueiam e transferem (para a Espanha?) os resultados da pilhagem. Por isso, uma vez que são desconhecidos os resultados reais dos ‘investimentos’ feitos por aquela nação-pirata nos países saqueados (no Brasil é considerada como o segundo ‘investidor’) é de se perguntar se, com o montante da pilhagem, não superaria a Espanha de longe o estado de miséria em que o povo se encontra. Prescindiria assim da máscara que ostenta de nação falida…A

Jotace

FALÊNCIA (DISFARÇADA) DA ESPANHA (2)

propósito, lembro um notável artigo do Mauro Santayana, republicado pelo Viomundo em 18 de março passado sob o título ‘Telefónica recebe recursos do BNDES, demite milhares, e ainda pede à ANATEL para alienar o patrimônio do povo’. Ou será que, no elenco da pirataria espanhola, seria a Telefónica caso único? Assim, a grande solução para a crise da nação poderia independer de maiores estudos das ciências econômicas: seria a ação do tão elogiado patriotismo do povo espanhol sobre os seus grandes empresários. Dependendo de como fosse tal ação ela poderia evitar que el-rey viajasse manco, a pedir ajuda, a beijar a mão de plebéias e impedido o pobre coitado, de retornar às suas grandes aventuras como um novo e impagável Tartarin de Tarascon… Jotace

Stiglitz: Socorro aos bancos da Espanha não vai funcionar « Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Maurício Caleiro: A falência da Espanha e seus disfarces […]

Francisco

A monarquia espanhola vai cair.

Quando cair a esquerda vai assumir.

Quando assumir, a direita financista vair conspirar.

Clic!

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, Marx.

Julio Silveira

Capitalismo inequivocamente tem sido isso. A iniciativa privada financista se apropria do estado sem tomar posse dele. Assume o poder sem o desgaste deste. O fazendo de forma dissimulada, insidiosa, chantagista. Usam a necessidade social da moeda, a outorga publica, para ter o controle, ter a propriedade do capital, criando, principalmente em estados liberais, a dependência dos seus favores. Contam para ampliar esse poder, inclusive de evitar interferências publicas, com uma teia de vasos comunicantes tramada desde a criação do principio. Inseriram regias remunerações para criar a cultura viciosa. Esses parceiros, tem sido denominados agentes do capital, por mais incrível que pareça, podem aparecer dentro das instituições publicas dos estados. Interessante nessa cultura é a incoerência do sistema. Empreendedores possuidores de pouco capital assumem os próprios riscos, geralmente altos, em suas empreitadas, prejuízos são arcados pelos próprios, geralmente recebem pouco apoio publico. Já para os possuidores do grande capital o risco é geralmente minimo, prejuízos geralmente são repartidos com o publico. O privado, neste caso, via de regra passa incólume legando grande dissabores para a cidadania. Cultura tão arraigadamente consolidada que transforma muitas vezes as próprias vitimas em seus defensores.

Fabio Marins

Esse sinete da hispanidad é fogo mesmo! Todavia importa acentuar inéditos sinais de exceção contra essa tradicional conduta. Porventura não aconteceram as manifestações com milhares de jovens em rebelião? No mais, desgraciadamente, en España, as brujas de fato estão soltas. Falências e disfarces idem. Sem citar as nobres andanças do rei caçador… Essa prevalência de “casas reais”, em pleno século, vinte brada contra o bom senso. Cervantes não vislumbrou tamanhas barbaridades futuras. Ortega y Gasset de certo modo. Pois agora no centro das sangrentas arenas, nestas nostálgicas tardes de toros, começam a levantar-se, nãos olés. E sim o clamor e a Rebelião das Massas.

Vladimir Safatle: Indiferença « Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Maurício Caleiro: A falência da Espanha e seus disfarces […]

abolicionista

A questão é: diante da derrocada do estado de bem-estar, a esquerda vai pedir para voltar no tempo? Ou vai procurar formas internacionais de vincular a luta contra a hegemonia do capital? A esquerda europeia parece ter aderia à primeira opção… não querem acreditar que o capitalismo está apenas seguindo seu curso normal, ou seja, se auto-destruindo. E não sejamos ingênuos, isso também ocorrerá no Brasil, com governo de esquerda e tudo…

Roberto Locatelli

Cada estado nacional representa uma identidade coletiva. A tentativa do neoliberalismo de decretar a morte dos estados nacionais foi uma violência enorme contra a humanidade. Foi bem parecido com o que Stálin fez ao promover a criação da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Bonifa

Quebrou, não há dúvida. E agora é a hora de raspar o tacho e depositar o cascão nos cofres dos bancos, além de empenhar o futuro, com o Estado espanhol avalizando gordos empréstimos para jogar tudo também na garganta famélica. E o pior é que o orgulho espanhol é quase cego: Se o “governo” fala que é preciso se sacrificar pela honra da Espanha, todos vibram de patriotismo, sem notarem que o “governo” está com as mãos escondidas direcionando o duto do sacrifício diretamente para a goela dos bancos.

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