Marcelo Manzano: Os estragos no corpo e alma do PT

Tempo de leitura: 4 min

Posse da Dilma

09/02/2015 08:01

O PT e o mar

por Marcelo Manzano*, no Brasil Debate

Assim como os ataques dos tubarões estraçalharam o peixe de Santiago, o pescador protagonista do livro “O velho e o mar”, de E. Hemingway, o exercício do poder produziu estragos irreparáveis sobre o corpo e a alma do PT. Mas será que ele caminha para o seu fim?

Desde que Lula assumiu o mais alto cargo político do Brasil em 2003, são incontáveis as manifestações anunciando o fim do Partido dos Trabalhadores. O primeiro ato dessa procissão talvez tenha sido protagonizado pela turma que migrou para o PSOL.

O saudoso Plínio de Arruda Sampaio, em “entrevista explosiva” à revista Caros Amigos de maio de 2005, já tratava de jogar luz sobre a “crise terminal” do PT. De lá para cá, a despeito de o PT ter realizado uma transformação social sem precedentes no País e ter conseguido vencer mais três eleições seguidas para a Presidência, a obsessão com o fim do PT só faz crescer.

E tem pra todo gosto. Da extrema esquerda ao Instituto Millenium, de petistas históricos a jejunos, de sindicalistas a ilustres acadêmicos, fervilham palpites e maus agouros a respeito do tempo de vida do partido.

Entre os argumentos, o mais frequente, espécie de denominador comum entre todos os críticos – inclusive dentro do partido – é o de que “o PT já não é mais aquele”. Já não teria o vigor nem a ousadia que tão bem empunhou na campanha das Diretas, no inesquecível processo eleitoral de 1989, na defesa intransigente de utopias de um difuso socialismo democrático.

Será? De fato, o desgaste que o PT vem sofrendo lhe tira o lustro e traz dúvidas quanto à sua capacidade de continuar avançando como partido. Talvez tenha cometido erros que transformem a sigla em um fardo excessivamente pesado para se carregar nos próximos pleitos eleitorais. O tempo dirá.

Entretanto, é preciso tomar cuidado e separar a análise da viabilidade política da sigla nas próximas eleições da análise do significado da experiência do PT como vetor de um projeto de esquerda para o País.

Tal qual o velho pescador Santiago, protagonista do livro “O velho e o mar” de E. Hemingway, o PT se aventurou pelo mar bravo do sistema eleitoral brasileiro e, em busca de realizar seu sonho de longa data – a construção de um país mais justo, soberano e igualitário – fisgou o seu Marlin-azul: a Presidência do País.

Peixe grande, canoa pequena, a viagem desde então se transformou em intensa luta pela sobrevivência e trouxe à tona as ameaças inescapáveis que recaem sobre aqueles que ambicionam avançar para além da linha do horizonte. Assim como os ataques dos tubarões estraçalharam o peixe do valente Santiago, o exercício do poder produziu estragos irreparáveis sobre o corpo e a alma do PT.

Mas, quando finalmente é avistado da costa, o peixe está lá, estampado na canoa do velho: na forma de um esqueleto enorme, a lição de que parte do sonho era inalcançável, mas também que o cerne de osso, esticado de uma extremidade à outra, é a peça de resistência que dá sentido à luta.

O PT errou, muito – como, aliás, erraram todos os outros partidos de esquerda ao redor desse mundão capitalista em que estamos metidos. Mas errou não porque abriu mão dos sonhos de outrora. Errou principalmente por ter acreditado ser possível, a um só tempo, jogar o jogo sujo do sistema eleitoral brasileiro, enfrentar os interesses rentistas que há tantas décadas nos governam e garantir os avanços das instituições republicanas que emergiram com a Constituição de 1988. A equação não fecha.

Contudo, a despeito de ter sido seriamente avariado no percurso, há motivos para dizer que o PT de hoje, talvez apenas uma carcaça do vigoroso partido dos anos oitenta, é melhor do que aquele.

O PT sabe hoje que não se constrói um país com arroubos voluntaristas, com uma cesta de boas causas, com um catado de princípios valorosos. O PT – e parte importante da esquerda brasileira – aprendeu na marra que não se consegue avançar em um país capitalista da periferia se não houver um Estado que seja o protagonista do desenvolvimento econômico, isto é, que lidere a acumulação capitalista e, ao mesmo tempo, imponha limites aos interesses privatistas.

Aliás, vale recordar, o PT dos oitenta, das “Diretas Já”, da encantadora melodia do “Lula-lá”, dava de ombros para o tema do “desenvolvimento” – olhava torto, por exemplo, para debates sobre os rumos da nossa indústria, desconfiava dos empréstimos subsidiados do BNDES ao capital e acendia velas para a austeridade fiscal.

Com a estrela na testa, restringia-se à defesa valorosa dos direitos dos trabalhadores, dos sem terra, das minorias e dos desvalidos. Aquele PT foi, sim, fundamental no processo constituinte e na sua longa jornada regulatória: mas às bandeiras meritórias de então foi acrescido o cerne, o eixo estruturante que até 2003 passava ao largo do ideário petista.

Hoje, graças ao choque de realidade de ser governo, tanto o PT quanto a esquerda brasileira estão em outro patamar. Graças às contradições enfrentadas pelos governos de Lula e Dilma, sabe-se, por exemplo, como a defesa dos empregos e dos salários, exige uma musculatura do Estado e de outras instituições públicas que vai muito além da intransigente defesa dos direitos da pessoa humana ou da inocente prática do orçamento participativo.

Dizem os críticos – externos e internos – que o PT, na medida em que galgou a hierarquia política do País, permitiu-se enrijecer; que seus quadros se encantaram com os vícios do poder e da grana; enfim, que o projeto de transformação social do País foi reduzido a um projeto de poder.

Sim, em parte isso de fato aconteceu – o que não é novidade alguma em se tratando de seres humanos, sejam eles franceses, japoneses ou menonitas. Mas é verdade também que muito se fez para avançar no sentido do pleno emprego e da melhora sistemática da renda dos assalariados e dos mais pobres. Isso foi conquistado – e não é pouco: basta olhar ao redor do planeta.

Em última instância, portanto, esse é o esqueleto que mantivemos preso ao barco, e é ele que nos permite perceber, por um lado, o quão pouco sabíamos antes de nos lançarmos ao mar e, por outro, o quanto tivemos que enfrentar para conquistar avanços civilizatórios fundamentais para o povo deste País.

*É economista, Pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho e Professor de Economia da Faculdades de Campinas – Facamp

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Comentários

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Maria

“””
Contudo, a despeito de ter sido seriamente avariado no percurso, há motivos para dizer que o PT de hoje, talvez apenas uma carcaça do vigoroso partido dos anos oitenta, é melhor do que aquele.”””

Estou dando um curso de interpretação de texto. Quem se inscreve?

Pafúncio Brasileiro

Se o PT tivesse feito, pelo menos, uma autocrítica honesta sobre todos os fatos, teria sido muito melhor. Mas, não fizeram, preferiram caminhar de cabeça baixa e sem qualquer reação. Isto sim, determina um “fim” e um “gás” enorme para a direita, que está, cada vez mais perdendo o temor de avançar ainda mais. Enquanto isso, a Dilma dá enorme combustível aos adversários, que já a imaginam fora. O carneirinho vai passivamente ao matadouro. A que ponto chegamos !

Francisco

Em que país burguês, a burguesia revolucionária teve de deixar de ser burguesa para manter ao novo direcionamento da sociedade?

Nenhuma!

As poucas concessões que houve foram depois de décadas e décadas.

O fatalismo da capitulação é que desgraça a esquerda: Robespierre foi até o fim.

    Yoshi

    Robespierre foi guilhotinado

    só lembrando…

abolicionistas

Essas alegorias são sempre capciosas. Pelo que entendi, o PT vai dar a carne as tubarões e o povo ficará com a carcaça, é isso?

    FrancoAtirador

    .
    .
    À Letra Crua, é Bem Pior:

    Sugere Pular Fora do Barco

    Para Nadar com os Tubarões.
    .
    .

Andre

Já li esse livro em várias linguas. Em francês o protagonista era o PArtido Socialista e o herói François Mitterand. Em espanhol o protagonista chamava-se PSOE. Em alemão o protagonista era o PArtido Social Democrata e o herói Gerard Schroder. Em Inglês chamava-se PArtido trabalhista e herói era Tony Blair. A versão americana tinha como protagonista o PArtido Democrata e como herói Bill e Hillary clinton. No final do livro a ex-esquerda envelhecida preocupada com as maquinagens do poder deixa uma porção de jovens rebeldes de extrema direita falando a linguagem do povão como herança: a frente Nacional na França, o UKIP na Inglaterra, o PEGIDA e o AfD na Alemanha, o Tea PArty nos EUA. A ex-esquerda envelhecida e ‘responsável’ deixou a rebeldia juvenil para a extrema direita. Teria sido melhor que tivesse ficado na esquerda. Belo futuro nos aguarda….

    MC

    “Já li esse livro em várias linguas”…
    E eu já vi esse comentário em vários blogs…

    (http://jornalggn.com.br/comment/574391#comment-574391)

    André, esse enredo que você conta aqui, e no Blog do Nassif, aconteceu mesmo no Brasil.
    Só que com o PSDB – que (lembra?) era a nossa “social democracia”… a nossa “terceira via”…
    Essa sim é a “ex-esquerda envelhecida” por aqui – e seus resultados já sabemos quais foram.
    Absolutamente nada a ver com a trajetória do PT.

    abolicionista

    Eu lembro. Daí o PSDB fez uma aliança com o PFL em nome da governabilidade.

    Realmente, nada a ver com o PT. O PT não faria esse tipo de coisa…

    abolicionistas

    Perfeito, não sei quantas vezes comentei aqui que o PT estava abrindo as portas para o fascismo, há anos a gente tem dito isso. Agora o fanatismo petista se diz horrorizado. Bom, não contem comigo.

Leo V

Ou seja, o texto afirma que fim que teve o PT valeu a pena.

FrancoAtirador

.
.
O Neoliberalismo transformou a Utopia do Socialismo

no Esqueleto de um Espadarte devorado pelos Tubarões.

E há Pescadores que se orgulham muito mais da Carcaça

do que da Luta, mesmo inglória, contra os Predadores.
.
.

Edgar Rocha

“O PT sabe hoje que não se constrói um país com arroubos voluntaristas, com uma cesta de boas causas, com um catado de princípios valorosos.”

Interessante. Quando é pra se fazer elogios, faz-se criticando e desqualificando o que se perdeu durante o processo de chegada ao poder. Os valores antigos é que atrasavam o partido. Mas, o que especificamente era atrasado? A chegada ao poder, claro! As bandeiras eram pesadas de mais pra se subir a rampa do Planalto com elas.

E, assim, “aprendeu na marra que não se consegue avançar em um país capitalista da periferia se não houver um Estado que seja o protagonista do desenvolvimento econômico, isto é, que lidere a acumulação capitalista e, ao mesmo tempo, imponha limites aos interesses privatistas.” Difícil entender: em que as lutas sociais atrasavam o protagonismo do Estado no desenvolvimento econômico e no fim das privatizações? As duas coisas no mesmo parágrafo soam como um contorcionismo retórico imperdoável.

Para o autor, o malfadado “pragmatismo” adotado pelo PT se justifica pelo viés desevolvimentista adotado, em oposição ao PT sonhador, automaticamente oposto ao mesmo. O PT das Diretas Já, do Lula lá, atravancava o PT pragmático e se opunha ao desenvolvimento do país.

Por fim, os erros e desvios de conduta: é natural do ser humano. Todo mundo erra, poxa. Ponto final.

Ok, sr. Marcelo Manzano. Estou convencido. Obrigado por abrir meus olhos. O projeto de esquerda implantado pelo PT, com falhas e agora, com retrocessos, nada tem a ver com a viabilidade da sigla para os próximos naos eleitorais. O tempo dirá.

O tempo dirá????

    Edgar Rocha

    As bandeiras eram pesadas demais. Corrigindo e reiterando.

Fabio Silva

“Peixe grande, canoa pequena, a viagem desde então se transformou em intensa luta pela sobrevivência e trouxe à tona as ameaças inescapáveis que recaem sobre aqueles que ambicionam avançar para além da linha do horizonte”.

Opa, então tá. Parem de criticar, pessoas, o peixe é grande e a canoa é pequena. A luta agora é pela sobrevivência, então, “vale tudo… vale o que vier…”, já dizia o saudoso Tim Maia.

O PT errou, disse acima o professor, mas todos os partidos de esquerda já erraram. Por que vocês estão pegando no pé só do PT, poxa vida?!

Aquilo que fazia parte do sentido da existência do partido, como orçamento participativo, oras, era criancice! Agora o partido está maduro e vive no mundo real. E o que é o mundo real? É o seguinte: se você tem povos inteiros sendo massacrados e oprimidos, mas você precisa fazer aliança com os opressores para sobreviver, nada de criancice! O negócio é abraçar o opressor e gritar contra a opressão (dos opressores de longe, não dos daqui). Isso é mundo real.

Ah e, professor, só para constar: o entendimento dos processos vitais, como nutrição e respiração, intimamente ligados à “luta pela sobrevivência” se chama fisiologia. Em política o nome é parecido, mas outro: fisiologismo.

    abolicionistas

    Sabe o que dizem sobre persistir no erro?

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