Katarina Peixoto: Expulsos de uma nova possibilidade, assistimos à segunda morte da Bossa Nova

Tempo de leitura: 4 min

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Trinta anos num só golpe: a segunda morte da bossa nova

por Katarina Peixoto, no RS Urgente

Acabou a bossa nova, de novo.

Saímos dos anos sessenta para o início dos anos zero e agora voltamos aos trinta anos de instabilidade, no Brasil.

Estamos nos últimos dias da segunda bossa nova.

Há uma novidade imensa, que nos invade qual uma experiência de ubiquidade das trevas, uma ficção científica distópica: fomos expulsos de novo de uma possibilidade, mesmo que, desta feita, real, e regredimos a um estado posterior, ao ajuste de contas histórico, de décadas.

Em 2016, o Brasil afundou na soma de todas as trevas. É a segunda morte da bossa nova.

Dos anos 70 temos o ridículo e o despudor da sanha repressiva.

Restaurado o GSI, ameaçada a inteligência civil como derivada de estrutura republicana, tem-se sumidades refratárias à pesquisa, ao conhecimento, em defesa do uso da força.

E, sim, já há presos políticos e o retorno da censura, contra o cinema nacional, é claro, contra o melhor do cinema nacional, globos fora.

Professores desempregados e perseguidos politicamente.

O delírio do anticomunismo marchando célere para a alucinação desnuda, em extrema paranoia só superada pela capacidade de destruição de laços sociais e do bom funcionamento educacional.

É claro que isso não é tudo. Quando mataram a bossa nova, da primeira vez, levaram junto os anos 60.

A vanguarda dos golpistas consistia em anteciparem, com a violação do sufrágio, então, as trevas que viriam e vieram, nos anos seguintes, sobretudo a partir dos 70.

Estas trevas, tanto na história como na arquitetura da atual destruição da bossa nova, não se sustentariam, hoje, sem o grande legado dos anos 80: o fisiologismo do PMDB.

Responsáveis por todas as lacunas e ausências de regulamentação no projeto constituinte, operadores das grandes negociatas no setor midiático ultraconcentrado do país e, claro, da negociação de tudo e qualquer coisa, por valores igualmente flácidos, o PMDB, neste segundo assassinato, tomou à frente a decisão sobre os destinos da burocracia, financiamentos e entregas, do país.

Nada está garantido, tudo é negociável, é claro, como chefes negociam com colaboradores.

E como colaboradores negociam entre si, povos fora.

Nessa contingência tão brasileira, dirão os jornais amigos, os maiores, a única coisa capaz de estabilidade precisa ser a moeda.

E então é que vem o corte na jugular da bossa nova.

A volta da agenda utópica, descarnada e financista, dos anos 90.

Mas desta feita, esqueçam o Serra dos genéricos e os pudores de elegância bem nascida do Fernando Henrique.

Com o apoio dos anos 70 e 80 assim, nessa tríade transcendental e macabra, quem é que precisa de mais do que um capanga togado, na alta corte, pronto para barrar os avanços republicanos da bossa nova agora a caminho do necrotério?

Serra é chanceler nesta chacina histórica, ora vejam.

A aliança eleitoral e política da direita, que embalou aquela contingência dos anos 90, não é mais necessária, quando a Constituição embala o cadáver da bossa nova, pela segunda vez assassinada, após a descoberta e o investimento na tecnologia soberana do Pré-Sal, está claro.

A novidade desta segunda morte é o modo como, de novo, jogaram fora as urnas.

É o peso da repetição, a soma de todas as trevas que empacaram, melaram, concentraram e destruíram o processo de redemocratização.

Enquanto esses trinta anos de golpe se anuncia, o país assiste a primeira mulher servir de desculpa (sombrio e repulsivo espetáculo misógino) para a segunda morte da bossa nova.

A guerrilheira contra os anos 70, a economista nacionalista dos anos 80, a burocrata estatal competente, dos projetos de resistência democrática e populares dos anos 90, segue altiva para a forca política dos assassinos da nossa bossa, de novo.

É uma soma de trevas, de todas as trevas.

A primeira bossa nova era música e promessa, uma antecipação poética e política com pouca experiência e quase nenhum lastro social. Foi uma morte que feriu o país para sempre e produziu muitos monstros, em sua maioria ressuscitados, como tivessem nascido há pouco.

Esta morte, não.

O Brasil ferido agora precisa da concentração de todas as trevas dos últimos 30 anos para ser destroçado, de novo, para a bossa nova ser finalmente sepultada, na história.

Não é só bossa nova, nem é bossa, somente.

É o fim da fome, e o fim da miséria. É a transferência de renda e o combate ao racismo. O respeito à democracia e ao papel do estado, no desenvolvimento social.

Saibam, os que sobreviverem a esta segunda morte, quem foi e quem é esta bossa.

É este país em que ainda estamos vivendo, é este horizonte jurídico e político que decidimos, juntos, há menos de dois anos.

É a nossa música e nosso tom.

O nosso petróleo e a nossa democracia.

Não há descanso em paz, como nunca houve, nem haverá, para os nossos cadáveres insepultos.

Que resistamos com o caráter dos que se deram quando a noite chegou dentro das trevas, nos anos 70.

Que lutemos como os nacionalistas e estadistas lutaram, pelas regras e pelo reconhecimento dos direitos, nos anos 80.

Que nos mantenhamos juntos, firmes, intransigentes e organizados, como conseguimos, nos anos 90.

Trinta anos num só golpe.

Diz que numa prece, que ela regresse. Vai, minha tristeza.


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Comentários

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Jose Junior Santos

É Edgar, faltou apenas por umas pautas aí em baixo para a gente assinar. Perfeito.

Edgar Rocha

A Bossa Nova é a maior metáfora dos reais anseios da nação. Sério isto??? Me desculpe a sra. Katarina Peixoto.
A única frase com a qual tenho de concordar é a de que a Bossa Nova não tinha (e não tem) nenhum lastro social. Diria que também não tem nenhum lastro cultural no Brasil. Quem escuta isto??? Para mim, a Bossa Nova nunca foi mais que o esforço da classe média-burguesa do Brasil pela domesticação audível de nossos ritmos ao gosto de gringo, com o Vinícius sentadinho na beira da praia tomando uísque ou água de côco, enquanto tudo é lindo e passa feito uma cena de cinema rebolando levemente à sua frente: “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…” A mesma classe média que fechava os olhos a Simonal, a Tim (me lembro do mea culpa feito por um figurão da época, revelando o racismo dos almofadinhas do banquinho e violão, numa resenha feita na ocasião da morte do Simonal, publicada no Estadão. Ele mesmo, um dos caras que torcia o nariz pra presença de um negro no meio dos vips). Esta tchurma que aclamava a Semana de 22 como a mais perfeita construção da identidade nacional. Que via poesia na lata d’água na cabeça e da cabrocha boa batucando no piano da patroa. Ai, que lindo! A mesma classe média que vai consumir pelos seus lindos narizes retilíneos e hedonistas a farinha que escraviza o favelado nos anos posteriores.
Bossa Nova é o país dos coxinhas, isto sim! A cabrocha que se atreva a batucar no piano do Tom Jobim pra ver se toma um esbregue! Lata d’água na cabeça é dor nas costas, minha senhora! Fosse hoje, com o “vidão” despido do bom comportamento daquele tempo, Jobim teria composto “A Cachorra de Ipanema”. O funk é a evolução do pensamento burguês, agora estendido aos donos do tráfico, na casa com piscina e território garantido, igualzinho o burguês do Leblon. Não há nada de bom no ideal burguês, seja nos anos 60, 70 ou hoje. Eram e são excludentes. Não foi a Bossa Nova que acabou no advento da Ditadura. Acabou-se a possibilidade de uma participação, mesmo que mínima, da classe média na boa vida destinada aos amigos da Ditadura exclusivamente. A classe média pagou o preço por sua inoperância naquele tempo, assim como a coxinharia pagará, para a alegria dos líderes intelectuais pseudo-esquerdistas, sedento por um séquito revoltado pra manipular e liderar. De preferência jovens brancos, que gozem de alguma comoção social quando forem torturados e mortos. Até o momento, os pretos da periferia estão morrendo todo como nos tempos anteriores à Ditadura militar. A Bossa Nova e os vanguardistas (pffff!), que eu me lembre, nunca deram voz ou atenção a esta gente desinteressante e (sic) feia (sic).

    Serjão

    Concordo plenamente, Edgar. Bossa Nova era o samba para os gringos, é o ritmo da tchurma do globo NEWS. Essa mesma gente, na hora decisiva, torce o nariz para o nordestino analfa e torce e apoia para que as coisas continuem sempre como foram: os pobres e os negros bem longe daqui, e que não se esqueçam de beijarem as mãos dos doutô empertigado e de anel no dedo.

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