Emiliano José: O comunista baiano que sobreviveu à ditadura

Tempo de leitura: 3 min

Marighella e Caetano

por Emiliano José*

A ditadura matou o comunista. Covardemente. Ditadura é sempre sinônimo de covardia. Nunca de coragem. Na noite paulista, o comunista foi assassinado no final de 1969. Matou e pretendeu enterrar o seu nome e o seu significado para sempre. Que ninguém mais se lembrasse dele. Que os brasileiros o esquecessem. Acontece, e a ditadura não podia compreender isso, nunca poderia, que os comunistas guardavam o sonho, como diz Caetano Veloso em seu belo Um comunista, no seu Abraçaço. E o sonho é indestrutível.

O comunista mulato baiano filho de um italiano e de uma preta haussá, que foi aprendendo a ler olhando o mundo desde a Baixa dos Sapateiros, entra em beco sai em beco, de onde subiu as ladeiras do conhecimento, de onde seguiu para o universo do comunismo. Assim nasce um comunista, um mulato baiano que morreu em São Paulo baleado por homens do poder militar nas feições que ganhou em solo americano a dita guerra fria Roma, França e Bahia. Os comunistas guardavam o sonho. Caetano estava no exílio quando mataram o comunista.

Caetano mandou um recado lá do quase inverno londrino: eu é que tinha morrido, ele estava vivo. Claro que ninguém entendia o seu recado – eram tempos de ditadura. Vida sem utopia não entendo que exista: assim fala um comunista. Caetano sofre ao pensar nele: Era luta romântica era luz e era treva feita de maravilha de tédio e de horror. E ele sabia que o mulato baiano já não obedecia às ordens de interesse que vinham de Moscou. E sabia, sempre soube: os comunistas guardavam o sonho. Porém, a raça humana segue trágica sempre indecodificável tédio horror maravilha.

O ano do Abraçaço foi também o ano de O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, notável biografia sobre o comunista. Sobre ele, escrevi também um livro: O inimigo número um da ditadura militar. Ano de 2011, apareceu o filme de Isa Grinspum Ferraz, que o retrata com imenso carinho. Há o livro organizado por Jorge Nóvoa, há tantos outros estudos. O sonho do comunista não fora em vão. Sua memória, resgatada, pouco a pouco, e agora de modo cada vez mais acelerado.

Penso no Abraçaço, na ousadia de Caetano. Penso no que foram os comunistas, difíceis de serem decodificados nos dias de hoje. Tinham algo de solidamente aventureiros, que me desculpem a expressão. Não tinham lugar de pouso, eram errantes, pensavam na humanidade inteira sem deixar de amar sua terra, dedicavam-se à luta de maneira integral. Queriam o socialismo e o comunismo. Tinham convicções.

Caminharam primeiro pelo glorioso PCB, nada assemelhado com o PPS de hoje. Depois, repartiram-se em muitas siglas, e houve os que, como o comunista do Abraçaço, que se lançaram à luta armada contra a ditadura, acreditando ser aquela a única forma de luta possível diante de tanta violência e arbítrio. A repressão usou o martelo-pilão para matar a formiga, como diria o general Adyr Fiúza de Castro. Massacraram pessoas, torturaram, desapareceram com tantos brasileiros e brasileiras, o que agora pode ser mais bem esclarecido com a Comissão Nacional da Verdade.

Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar, o mulato baiano, o guerrilheiro que incendiou o mundo, o pai de Carlinhos Marighella, o comunista companheiro de Clara Charf, avô de Maria e de Pedro, estudante que impressionou o Central e a Politécnica com suas provas em versos, que se esbaldava nos carnavais baianos em sua juventude, que contagiava o mundo com sua alegria, que ajudou tantos a buscarem o exílio, que resolveu ficar até o fim na luta contra a ditadura, o comunista de Caetano Veloso é parte eterna da memória do povo brasileiro e do povo da Bahia, sua terra.

Se dele, Marighella, lembramos com admiração, se dele podemos aprender tanto em desprendimento, se dele acolhemos os sonhos generosos para com a humanidade, da ditadura, diferentemente, só podemos lembrar da violência e do arbítrio, da tortura, das mortes, dos desaparecimentos, uma longa noite de terror, uma situação que sob nenhuma hipótese queremos ver repetida. A ditadura será para sempre repudiada. Marighella é um herói de nossa gente. Para sempre.

*Artigo publicado originalmente na edição desta segunda-feira, no jornal A Tarde.


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Comentários

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Homenagem a Marighella: Segunda-feira, às 10h, em SP – Viomundo – O que você não vê na mídia

[…] Emiliano José: O comunista baiano que sobreviveu à ditadura […]

Ligeovanio

Marighella, ÚNICO EM SUA COERÊNCIA E DISPOSIÇÃO AO SACRIFÍCIO, sacrifício esse, pena, não valorizado por aqueles que têm o dever de honrar a memória dos que foram imolados a fim de que hoje pudéssemos respirar ares de liberdade.
Marighella, tua estrela há de brilhar. Os teus algozes sim, estão fadados ao esquecimento eterno…

wagner

Esse memorável combatente morreu no dia de meu 15º aniversário. Ouvi pelo rádio sobre a emboscada de que foi vítima. Procurei saber sobre ele a vida toda (exceto nos períodos em que a ditadura impôs censura aos livros, jornais e revistas). GRANDE SER HUMANO, pra se dizer o mínimo.

Mardones Ferreira

Assisti o filme de Isa Grinspum Ferraz na Semana de Cinema e Direitos Humanos aqui em Curitiba. Foi sensacional. Um filme memorável. Uma história de vida ímpar. Marighella e sua história de vida humana, demasiada humana jamais serão apagadas.

Caracol

Comunismo… Socialismo… Justiça Social…
Não se elimina ideologia por decreto.
Fukuyama foi apenas mais um babaca.

    Damastor Dagobé

    ahhhhhhhh sim…o sucesso dos “paraiso dos trabalhadores” restantes, 2 ou 3 em todo o mundo é espetacular..o que tem de gente tentando fugir pra Coreia do Norte e pra Cuba…não tá no gibi.

    Caracol

    Coreia do Norte e Cuba não me interessa. Eu sou brasileiro e vivo no Brasil. Agora… o que tem de brasileiro voltando dos USA… é, isso não tá no gibi.
    Quando isso aqui ficar do jeito que queremos, se você decidir ir pra lá… boa viagem!

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