Antônio David: O tucano José Álvaro Moisés é um mau defensor da democracia

Tempo de leitura: 7 min

José Alvaro Moises

 por Antônio David, especial para o Viomundo

O cientista política José Álvaro Moisés, professor aposentado da USP, publicou artigo no qual pretende contrapor-se ao que ele chama de “interdição do debate e do processo de impeachment” (O Estado de S. Paulo, 19/10/2015).

Ex-petista, Moisés hoje é ligado ao PSDB, tendo ocupado alto cargo no governo Fernando Henrique Cardoso.

Moisés acusa de incorrer em “equívoco conceitual” ou “má-fé” aqueles que classificam de golpe o esforço em curso, capitaneado pela oposição, de retirar Dilma Rousseff do cargo. Segundo Moisés, “não é possível, neste momento, dizer de modo inequívoco que não existem provas de crime de responsabilidade da atual presidente”, de modo que “o rito do processo é importante, precisamente para se verificar se houve isso ou não” em alusão a suposto abuso de poder por parte da mandatária máxima.

Para ele, “além de autoritário e pretensioso, é um sinal de arrogância intelectual e política dizer-se, de partida, que houve ou que não houve crime de responsabilidade; existem meios e instituições precisamente mandatados para examinar isso e dar um veredicto a respeito”. Ele menciona o TCU e o TSE, além, obviamente, do Congresso Nacional,

Enfim, Moisés lembra que “impeachment é um recurso existente na Constituição brasileira precisamente para que as instituições e a sociedade enfrentem situações em que existem dúvidas a respeito de práticas de abuso de poder como vivemos hoje no Brasil” (o destaque é meu).

Disputa política ou remédio institucional?

O destaque na frase acima é proposital. Note bem, caro leitor, que Moisés demonstra saber, de modo inequívoco, que a presidente da República cometeu atos de abuso de poder. Sua certeza, que soa como um ato falho, contrasta com o tom do artigo em seu conjunto, centrado no apelo à dúvida. Voltaremos a isso no fim.

É o próprio Moisés quem argumenta: “impeachment, como se sabe, não é um mecanismo usual de disputa política, mas remédio constitucional adequado para se fazer face a circunstâncias muito específicas, como na situação política atual do país e, assim, ele pode e deve ser mobilizado quando necessário”.

Sem dúvida, o instrumento jurídico do impeachment não deveria ser “mecanismo usual de disputa política”. Porém, não é o caso de perguntar se esse instrumento não está sendo mobilizado (e distorcido) com esse fim?

Moisés não só não faz essa pergunta como não admite que os outros a façam.

O expediente por ele empregado para negar que essa pergunta possa ser feita é um discurso formalista. Há instituições, há prerrogativas e há instrumentos. “O TCU decidiu por unanimidade apontar o desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal pelo governo”. Acreditemos no TCU. O suposto desrespeito à LRF “a rigor, precisa ser examinado, avaliado e decidido pelo Congresso Nacional, a quem a Constituição atribuiu essa prerrogativa”. Confiemos no Congresso Nacional.

Moisés tem razão ao supor que as instituições deveriam funcionar com isenção, dentro de parâmetros republicanos. Não há dúvida de que devemos reinvidicar isso e lutar por isso. Todavia, terá ele razão ao supor que o TCU e o Congresso Nacional efetivamente têm funcionado dessa maneira? Terá ele razão ao confundir as instituições, que deveriam funcionar à maneira republicana, com aqueles que nelas ocupam cargos (no caso, ministros do TCU e parlamentares) e seus esforços em utilizar-se desses cargos para promover um golpe branco?

É certo que, em face do mau uso de cargos públicos e políticos, não devemos rifar as instituições, descartá-las. Mas tampouco devemos fechar os olhos e confiar na pureza das instituições quando a realidade é bem distinta. Ambas atitudes jogam contra os valores republicanos e atentam contra a democracia.

Se há dúvidas sobre suposto crime em face da LRF, seria o caso de Moisés mostrar, com clareza e precisão, qual é a dúvida. Tanto mais em se tratando dele, Moisés, que não tem dúvida, mas certeza de que houve “abuso de poder”. Para tanto, seria necessário comparar a defesa produzida pela Advocacia Geral da União com o parecer do TCU e o teor do pedido de impeachment assinado por Hélio Bicudo e outros.

É certo, como argumentou Moisés, que cabe às instituições esse papel. Ocorre que em uma democracia cabe à sociedade perguntar se as instituições estão cumprindo seu papel e avaliar, de forma crítica, seus atos. Sobretudo em se tratando de pedido de impeachment de mandatário eleito democrática e legitimamente pelo voto popular.

Mas Moisés prefere abster-se disso. Ele confia inteiramente que o TCU e o Congresso Nacional agem e agirão de maneira estritamente republicana, e quer que nós também confiemos.

Ironia e ato falho

De tão formalista, o discurso de Moisés chegou ao ponto de dizer o seguinte:

“/…/ chama a atenção que o governo da presidente Dilma, sendo apoiado por uma coalizão majoritária no Congresso – em tese, formada segundo princípios republicanos e públicos –, pode impedir a abertura do processo se quiser; alternativamente, em não havendo nada de que se temer – como é alegado – a coalizão majoritária poderia simplesmente admitir a abertura do processo e fechá-lo na ausência de provas consistentes; seria uma forma adequada de as instituições darem uma resposta à cidadania e às milhares de pessoas que, em recentes pesquisas de opinião e em várias manifestações de protesto, defenderam a abertura do processo”.

Não posso acreditar que não se trate aqui de uma ironia. De todo modo, tendo ele sido irônico ou não, note novamente, caro leitor, que tais afirmações contradizem tudo o que o autor afirmou antes. Pois, se os parlamentares agem segundo estritos preceitos republicanos, olhando estritamente para suas prerrogativas, tal como Moisés quis argumentar, disso decorre que tanto um presidente com maioria no Congresso pode sofrer impeachment como um presidente sem maioria no Congresso pode não sofrer impeachment. Que diferença faz ter ou não ter o apoio de uma “coalizão majoritária”, se o que importa é haver ou não haver “provas consistentes”? Teoricamente, nada. Republicanos que são, os parlamentares julgarão como juízes imparciais.

A contradição no discurso de Moisés é escandalosa.

Ocorre que, no afã de ser irônico, Moisés cometeu outro ato falho ao evocar a figura da “coalização majoritária”. Pois nesse ponto, tendo desmentido toda a narrativa idílica que ele próprio contruíra, ele disse — talvez sem querer — a mais pura verdade. De fato, todos sabemos que o acolhimento ou não do impeachment e sua vitória ou derrota ao cabo dos trabalhos depende de o mandatário ter ou não ter maioria no Congresso. Nada tem a ver com prerrogativas legais, nem com análises técnicas imparciais, mas com interesses particulares nada republicanos.

É certo que, quando há “provas consistentes” de crime e tais provas são expostas à sociedade de maneira clara e compreensível para a população (o que não é o caso, como demonstrou recente pesquisa do Ibope), fica difícil para os parlamentares não cortar da própria carne, embora haja resistências, como bem mostra o caso de Eduardo Cunha. Já o oposto não é verdadeiro. Na ausência de “provas consistentes”, inventam-se provas, que são na prática pretextos. A ocasião foi dada pela baixa popularidade da mandatária, fruto da situação econômica do país.

Em suma, não é o mérito da questão que será analisado se o pedido de impeachment de Dilma Rousseff for acolhido. Trata-se de disputa política pura e simples, do qual as “pedaladas fiscais” são um mero pretexto — pois em nenhum lugar do mundo atrasos em repasses (que não geram dívidas) do Tesouro para bancos públicos são motivo para impeachment. No caso brasileiro, tais atrasos ocorrem desde o governo FHC, do qual Moisés participou.

Há um esforço orquestrado que envolve ministros do TCU, parlamentares da oposição e da base do governo, partidos políticos, empresas de comunicação — dentre as quais o jornal onde o artigo de Moisés foi publicado — e organizações da sociedade civil para promover um terceiro turno.

Não contente em ignorar essa realidade, ou fingir ignorá-la, Moisés quer que todos finjamos com ele.

Qualidade da democracia

José Álvaro Moisés é um estudioso da “qualidade da democracia”. Mais que um estudioso, é um defensor da causa.

A considerar o artigo ora analisado, só posso concluir que Moisés é um mau defensor da qualidade da democracia. Pois numa democracia de alta qualidade — se é que podemos falar assim –, não basta supor a existência de instituições, prerrogativas legais e instrumentos legais. É necessário constatar se as instituições funcionam de fato como deveriam funcionar.

Se Moisés raciocinasse dessa maneira, ele poderia perguntar, por exemplo, por que razão nunca foi aberta uma CPI na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo com vistas a investigar irregularidades e dúvidas sobre práticas ilícitas e abuso de poder do governo do Estado de São Paulo. Com todo o respeito, penso sinceramente que Moisés não faria essa pergunta porque não tem interesse em fazê-la.

Há que se diferenciar duas coisas. Quando as instituições, que deveriam funcionar segundo preceitos republicanos, não funcionam segundo tais preceitos porque a disputa política é tal que perverte seu funcionamento, atenta-se contra a democracia. Isso é um problema grave.

Agora, quando um cientista político finge que as instituições estão funcionando segundo preceitos republicanos quando claramente estão sendo manipuladas para fins contrários à democracia, e o faz sob o argumento de defender a “qualidade da democracia”, isso não é apenas um problema grave; é um insulto.

Moisés contrapõe-se àqueles que, segundo ele, querem “usar a violência para dirimir conflitos de poder”. A crítica é justa, embora não possa ser dirigida ao MST tal como ele procurou insinuar, pois a liberdade de expressão e de manifestação são inalienáveis em uma… democracia.

Já o uso que ele, Moisés, faz da palavra “democracia”, essa sim é uma violência simbólica. Afinal, Moisés não apenas construiu uma ficção que, na prática, é a justificação de um golpe branco. Em seu discurso, o ideal de democracia é mobilizado para a defesa do seu exato oposto.

Se Moisés fosse de fato um formalista, alguém que realmente acreditasse no que escreveu, a saber, que, na querela em curso, o TCU e o Congresso Nacional estão seguindo à risca suas atribuições e prerrogativas legais, eu diria que ele é ingênuo. Não é o caso. Os atos falhos em seu discurso, bem como sua longa trajetória política me levam a crer que seu formalismo não passa de pura retórica. Moisés sabe o que está em jogo.

A qualidade da democracia depende de muitos atores. Os intelectuais e cientistas políticos têm um papel a desempenhar, podendo estes agir com boa-fé ou má-fé.

Em seu artigo, Moisés teve a proeza de, a um só tempo, atentar contra a democracia e contra a palavra “democracia”. Em nome de um “ponto de vista democrático e republicano”, Moisés emprega um discurso formalista, ignorando a existência de interesses particulares nada republicamos no interior do TCU e do Congresso Nacional e que vieram à tona com força na atual controvérsia do impeachment.

Nisso, não há nada de novo. O coroamento e a inovação vem quando Moisés dirige acusações contra aqueles que criticam tal predominância, como se a democracia consistisse em resignar-se e aceitar o que membros do TCU (que são políticos, não magistrados) e parlamentares dizem e fazem, simplesmente porque ocupam esses cargos.

Estamos aqui diante de uma concepção de democracia que faz o elogio da passividade diante de instituições supostamente puras, como se vivêssemos em uma República idílica. Nessa concepção de democracia, bastante velha aliás, a crítica não tem lugar.

Não há dúvida de que essa concepção, ou melhor, essa posição política e ideológica contribui enormemente para a baixa qualidade da nossa democracia.

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Comentários

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Rodrigo Vianna

Dizem que na USP, nos anos 80, havia uma curiosa dupla de cientistas políticos ligados ao PT: Wefort e Wefraco. O primeiro virou ministro de FHC. O Wefraco virou o que mesmo?
Golpista envergonhado?
Wefraco ministra cursos na universidade sobre mecanismos de “accountability” da Democracia. Sim, em inglês mesmo.
O Wefraco acha chique colocar títulos de cursos em ingles, e acha lindo escrever artigos empolados (e contraditorios) de ode ao golpismo.
Fui fortemente desaconselhado, por uma mestra que entende das coisas, a frequentar as aulas de Wefraco na USP.
Agora compreendo.
Esse é o “accountability” de Wefraco: golpismo envergonhado nas páginas do jornal que fala para a velha oligarquia paulista.

    Julio Silveira

    É, meu caro, mas parece que nas hostes tucanas, como no IFHC por exemplo, o curso dele virou obrigatório, pode ser o Goebbels dos Tucanos.

    Fani Goldfarb Figueira.

    Pariodiando Marx, que dizia que Dhuring jamais se recuperara de ter vivido numa pequena cidade da Alemanha, brincávamos, na época em que éramos alundos da USP, que Weffot jamais se recuperaria de ter nascido em Palmital. A brincadeira não pretendia menosprezar a pequena cidade do interior paulista, mas encontrar uma explicação irônica para as limitações do professor. O Wefraco, já então, herdara todos os defeitos do mestre, acrescidos de uma imensa pequenez de caráter.

Urbano

Reclamando indevidamente nos do outro lado, a própria dicotomia em que desemboca o seu entender…

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