Alexandra Costa: Quando o “combate à pobreza” serve ao mercado

Tempo de leitura: 3 min

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terça-feira, 3 de março de 2015

A panaceia da solidariedade no poder público e a política de Assistência Social brasileira

Tu, porém, quando deres uma esmola ou ajuda, não deixes tua mão esquerda saber o que faz a direita… Quando deres um donativo, não toques trombeta diante de ti…

Mateus 6:2-3

Por Alexandra Machado Costa, em seu blog

Solidariedade é questão pessoal. Fundamental em qualquer relação e/ou sociedade. Assistência Social é outra estória. E tem História!

Nos anos de 1960 começou no Brasil e na América Latina, a Reconceituação do Serviço Social, profissão responsável por assistentes sociais, profissionais que deveriam ser responsáveis pela Assistência Social no Brasil, que a declarou, a partir da CF-88, uma política pública de direito e de direitos.

Diferentemente dos anos 1660, quando damas da aristocracia europeia ofereciam ajuda a doentes e pobres, marcando aí a gênese caritativa do trabalho social, a partir de 1960 em um Encontro de Escolas de Serviço Social no Brasil, em Belo Horizonte, o Serviço Social adquiriu ares de engajamento político e compromisso com a transformação social, ainda identificado com o pensamento da Igreja Católica, alinhado com o Movimento de Educação de Base, mas já sob a luz da encíclica Rerum Novarum, que critica a miséria e a pobreza dos trabalhadores, defendendo salários justos e denunciando o capitalismo selvagem e os patrões desumanos.

A partir dos anos 90 no Brasil, o neoliberalismo econômico marcou também a política de Assistência Social ao entender a desigualdade social como um fator positivo e indispensável para impulsionar a competitividade na sociedade, o que é fundamental para o seu desenvolvimento.

O neoliberalismo, que se caracteriza pelo Estado mínimo, reduz as intervenções do Estado no campo social, apela à solidariedade e se apresenta como parceiro da sociedade em suas responsabilidades sociais, através da “mercadorização” dos atendimentos às “necessidades sociais” e da transferência das suas responsabilidades governamentais para as “ong’s”, organizações não governamentais, privatizando os serviços e centralizando poderes no Mercado, que deve suprir, na lógica da mercantilização, as necessidades humanas, vinculadas ao mercado de consumo e não aos direitos humanos, sendo o cidadão visto pela sua capacidade de consumo.

Os direitos sociais cada vez mais passam a ser entendidos como necessidades sociais, no ideário neoliberal, que desloca para a sociedade civil as responsabilidades do Estado, apelando para o discurso da solidariedade e para a ideia de “bem comum”, que esconde por trás dessa concepção a desresponsabilização do Estado, fortalecendo o capitalismo perverso, potencializando as desigualdades em prol do fortalecimento da lógica do modo de acumulação, em detrimento de lutas e conquistas históricas, sociais e políticas.

Com tudo isto, após os intensos movimentos sociais e culturais de 60, 70 e 80, a partir dos anos 90, as expectativas dos movimentos sociais com a transformação social se traduziram nas adesões à dinâmica neoliberal, através das parcerias institucionais, e as ong’s abriram mão da concepção das políticas públicas enquanto direito; a participação nos projetos do governo substituiu as lutas e criticas à sociedade capitalista, a serviço de uma agenda neoliberal.

Abandonaram discursos, bandeiras e as práticas transformadoras e têm, ainda, forte cunho assistencialista; a maioria trabalha à revelia das regras e regulações do Suas.

Compreender a Lei do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, em vigor no Brasil, e agir de acordo com ela, é promover a participação política, o exercício efetivo da democracia nas instâncias da assistência social e por fim, o exercício da cidadania.

O Suas sabe que a questão não é integrar o indivíduo, pois o indivíduo está integrado, com papel definido no atual contexto da diferença de classes.

O papel da Assistência Social deve ser transformador, através da organização das classes trabalhadoras.

A Assistência Social é direito constitucional e, portanto, dever do Estado.

A Assistência Social no Brasil deveria ter comando único, isto é, todo trabalho social deveria se orientar de acordo com o Suas, e este, pelas conferências municipais, estaduais e federais.

No Brasil, mesmo os governos considerados de esquerda, mantêm a política de Assistência Social no viés imposto nos anos 90, por FHC.

As instâncias reguladoras desta política não se posicionam.

Contraventores, corruptos, enganadores diversos e pessoas de bem, não politizadas, defendem e praticam a “caridade” através das ong’s, garantindo lugar no céu, recebendo recursos públicos e contrapartidas pessoais e ainda, contribuindo com a reprodução da atual situação de caos social em que nos encontramos com tanta violência e barbaridade, nos campos e nas cidades, impedindo profissionais devidamente preparados para este enfrentamento, de atuarem de forma técnica e eficaz.

E na assistência social oficial, pasmem: Pensa-se que o bacana é “dar o cartão magnético” para o povo comprar, é “dar o bolsa-família”, que tanto criticávamos, é “dar” brinquedo e lanche no Dia das Crianças e no Natal, repetindo o calendário escolar como se isto amenizasse riscos e vulnerabilidades dos outros dias do ano.

Ainda, na assistência social brasileira, pessoas “boazinhas ajudam carentes e mais necessitados”…

Muito cruel.

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Comentários

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Claudio Meira

“Impedindo profissionais devidamente preparados para este enfrentamento”. Alexandra, faltou você informar onde estão este profissionais. Acho que no final do artigo você generalizou bastante. Trabalho no CREAS e sei a dificuldade que está sendo para implementar o SUAS. Acredito que participando das reuniões dos conselhos e fiscalizando a execução dos serviços encontraremos o caminho para seguir na direção certa. Tem muita coisa errada mas também está se mexendo e sacudindo uma situação de conformismo há muito instalada na cabeça das pessoas. Sou otimista, acho que estamos avançando, aos poucos, mas estamos.

    Alexandra Machado Costa

    Realmente não propus inquisições, mas garanto que faltam profissionais do Serviço Social nas unidades de atendimento da sua cidade, sr. Cláudio… Como em todas as profissões, anualmente, formam-se muitos, e faltam postos de trabalho, diante do exército de mão de obra barata… Neste caso, muito, diante do fato de existirem “educadores sociais” que são, via de regra, jovens idealistas que topam a parada da Assistência Social mas se “decepcionam” com o serviço, até por não estarem preparados! E muitas vezes, não têm sequer capacidade crítica para entenderem sobre a precariedade do serviço e a precarização do trabalho… Os contratos dessas pessoas, nos serviços públicos quase nunca, garantem direitos trabalhistas. Nunca fui pessimista, ao contrário. E pode-se ver isto em meus artigos, proposta e projetos, que sempre foram coerentes; fundamentados na minha prática e orientadores dela, sempre deram certo. Trabalho na linha da construção, mas sei que condescender aqui, é tapar o sol com a peneira ou levar alguma vantagem. Antes de me formar, em 1993, já atuava na Assistência, com minha mãe… Contribuí ativamente na construção do Suas e acompanho-o desde então. Coordenei Paif, Projovem, Nuec’s da Cidadão 2000, fui direotra técnica de Cais… Sempre participei de reuniões, conferências, conselhos… Muita enrolação e incompetência mesmo! O tempo urge. Precisa ver o tanto de A. S. que eu convivia e nem sabia, até publicar este artigo… Não é brinquedo não… TDB

    Alexandra M C

    Olha só, Sr. Claudio Meira: http://www.sol.pt/noticia/127092 É como eu disse!!!

Edgar Rocha

Engraçado… porque um assunto destes interesse tão pouco aos opinadores do Viomundo. Será tão incômodo à esquerda este tema?

Sintomático…

    Alexandra Machado Costa

    Este desprezo ao que eu escrevo é constante, Edgar. Mas estou amando a contagem de likes, que já passam de 100 :) Mas veja bem: circulo pela esquerda, pela direita e pelo centro… Rs Ninguém condena ou fala mal, mas também, não avanço na discussão e condução das questões que levanto!!! #VQV Tá bom, tá bom…

Edgar Rocha

Aonde é que eu assino este texto? Alexandra Costa foi cirúrgica na análise à prática e concepção do que seja assistência social. Só acrescentaria que a tolerância aos depósitos de pobres e crianças faveladas nas periferias (pra tirar da rua e não virar marginal, ou seja, não é direito do cidadão em situação de risco ser assistido pelo Estado. É favor!) é algo que cresceu tanto para a esquerda quanto para a direita. Isto porque os “caridosos” tratam sua inserção nas comunidades como moeda de troca para apoio e blindagem institucional. Estas ong’s são vistas por muitas lideranças como verdadeiros currais eleitorais. Se a Assistência Social chegou a este ponto é porque não houve contraponto.
O que me dá mais raiva é o limbo social em que vivem estas instituições, gerando a visão ambígua de seu papel na sociedade e a impossibilidade de se cobrar seriamente a qualidade dos trabalhos. Se você denuncia um antro destes, o argumento é o de que a entidade estaria fazendo a diferença e é perseguida porque ajuda aos mais carentes. Se questiona a qualidade do trabalho, o argumento é o de que os “agentes sociais” contratados são lideranças comunitárias que não tem formação – apensas boa vontade – e que tem que ser instruídos, apoiados e tolerados em nome de sua profunda abnegação. Se se fala em exigir a contratação de pessoal formado, isto é interferir na ação social e na espontaneidade destes movimentos. É tirar a autonomia. Se criticamos a dependência em relação a convênios com o governo, o que os descaracteriza enquanto ação social, diz-se que o poder público deve auxiliar estas entidades e que é justo fazer parceria com os que querem mudar o mundo. Enfim, coação moral, pura e simples. É de dar nojo. Ninguém sabe se o funcionário destas Ong’s é um funcionário público, embora reivindique o mesmo status e os mesmos direitos. Só não o é quando cobrado. Aí ele (ela) é só uma “tia” ou “tio” cheio de boa vontade. Da mesma forma as entidades: as relações profissionais são marcadas pelo “pessoalismo” de um movimento social. É todo mundo parceiro, companheiro, família. No entanto, qualquer crítica interna é tratada com ações burocráticas e de hierarquia empresarial. Sei porque tive a infelicidade de trabalhar como monitor num troço destes. É máfia, mesmo. Um lugar onde a pobreza é considerada mercadoria e, por isto, não há interesse algum em se implementar ações que possam de fato melhorar a vida da comunidade. Como disse uma vez uma “coordenadora”: pobre tem que calar a boca e dar graças a Deus por ter um prato de comida pro filho. São um bando de “passa-fome” que estão ali de favor. Até isto escutei lá dentro. Eu não imaginava que gente que se arrogava ser liderança de esquerda, com consciência social e engajamento, pudesse agir desta forma e com apoio de lideranças partidárias influentes (o curral eleitoral de que falei). Foi a maior decepção que já tive com as famigeradas “lideranças” e com o que estava se transformando os movimentos sociais e seus agentes.

    Edgar Rocha

    Ah, sim! espero que a implantação do SUAS contemple esta realidade e desenvolva meios eficazes contra a mercantilização da miséria.

    Alexandra Machado Costa

    Quanta vivência, Edgar… E quanta sofrência! Por isto eu digo que é cruel, este campo. Uma incoerência enlouquecedora! Considerando que vc espera “que a implantação do SUAS … desenvolva meios eficazes contra a mercantilização da miséria”, convido-o para conhecer mais, dos meus artigos e propostas, calcadas no materialismo histórico e dialético em confronto com a minha prática e a conjuntura apresentada nas notícias que guardo, em cartazes de recortes de jornais antiiiigos Rs É incrível como as notícias não mudam, desde que comecei a escrever, em 2000. E à cada dia, o que escrevi fica mais atual e necessário. Por isto, continuo insistindo em propagar. Só para vc ter uma idéia, Edgar, veja esta Carta à Presidente, que há dois tento fazer chegar à ela, e ter algum comentário: http://alexandramcosta.blogspot.com.br/2014/12/resposta-presidente-dilma-roussef.html No máximo, alguém no twitter disse que era utópico, como se isto fosse problema, desconsiderando Paulo freire, que ensinou que “Utopia ñao é o irrealizável, mas aquilo que ainda não se realizou”. Trabalho nesta linha, de Paulo Freire, e creio, como ele, que “Precisamos sonhar novos sonhos, diferentes dos que aí estão”. Passe pelo blog, fique à vontade! Lá tem textos, artigos, propostas… TDB

Liz Almeida

A política de Assistência Social praticamente inexistia antes do Governo Lula, só no papel.

Por ter sido efetivada pra valer já depois dos anos 2000, uma política muito recente ainda, é claro que ainda tem que ser melhorada, ampliada, etc.

O importante é que saiu do papel, e o debate está posto…

    Alexandra Machado Costa

    O que me intriga e atrapalha é isto, Liz… “A política de Assistência Social praticamente inexistia antes do Governo Lula”… Nem no papel. Foram profissionais da assistência social e conferẽncias, que, na esquerda, com Lula criamos o Suas. e chegamos a sair do papel, aqui em Goiânia, em sua implantação. Mas houve um desmonte nos serviços e a precariedade é a citada por Edgar Rocha, que aqui explanou com propriedade um pouco do que se vive nas trincheiras da assistência social. E o pior: O debate não está posto… Há muita negligẽncia neste quesito, pelos poderes legislativos, pelos órgãos e conselhos de classe e também pelas academias. Infelizmente!

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