Fernanda Giannasi: Trabalho conjunto com ONGs italianas foi vital para nossas lutas e vitórias contra o cancerígeno amianto

Tempo de leitura: 10 min

Brasileiros e italianos na luta para banir o amianto, de cima para baixo: 

*Fernanda Giannasi, símbolo da luta antiamianto no Brasil

 *Agata Mazzeo, da Universidade de Bolonha, que fez tese sobre o movimento antiamianto aqui.

*Reencontro na casa de Romana Blasotti Pavesi, de vestido estampado de azul, que perdeu marido, filha, irmã e sobrinho para o câncer da fibra assassina – o terrível mesotelioma.

*A placa do Parque Eternot (não à Eternit, não ao amianto), que a prefeitura de Casale Monferrato erigiu em memória das vítimas da fábrica nessa cidade da Itália.

*Valentino Francese, o pizzaiolo solidário. Ele e o irmão Giuseppe, migrantes do sul da Itália, abriram a pizzeria Santa Lucia na próspera Casale Monferrato. Embora não esteja doente pelo amianto, está presente em todas as atividades contra a fibra cancerígena. No balcão da pizzaria, tem a bandeira italliana gravada Eternit Giustizia (Eternit Justiça) e na porta o cartaz “Eternit. Quantas vezes eles ainda têm de matar”.

*Ativistas brasileiros e italianos, da esquerda para a direita: Giovanni Cappa, Eliezer João de Souza, Bruno Pesce, Fiorela Belpoggi (Collegium Ramazzini), Agata Mazzeo, Laurie Kazan-Allen, Fernanda Giannasi, Nicola Pondrano, Tina Calleri e Giuliana Busto.

por Conceição Lemes

A engenheira Fernanda Giannasi é símbolo da luta antiamianto no Brasil. Dia e noite. Faça sol ou chuva. Frio ou calor.

Embora sua atuação seja focada aqui, Fernanda é referência mundial na batalha contra a fibra assassina.

Há 32 anos tem sido a voz de milhares de trabalhadores, vítimas da fibra assassina, e de seus familiares.

Uma batalha pesada, dolorida, com muitas perdas e pedras no caminho.

Foi processada mais de dez vezes pela indústria do amianto – principalmente pelo grupo Eternit e seus porta-vozes, bem como por empresas interessadas na manutenção do lucrativo negócio do amianto no País.

Sofreu ameaças e intimidações por parte do poderoso e pesado lobby da fibra cancerígena.

Foi perseguida até no Ministério do Trabalho, onde trabalhou como auditora fiscal de 1983 a 2013. O lobby do amianto também tinha seus tentáculos no órgão.

Nas últimas semanas, porém, está saboreando ótimos frutos dessa dura batalha.

No início de junho esteve na Itália para assistir à cerimônia de proclamação de 400 “doutores de pesquisa” da universidade mais antiga da Europa, a Universidade de Bologna, fundada em 1088.

Agata Mazzeo foi uma das escolhidas para oradora. Ela viveu 12 meses em Osasco, na Grande São Paulo, para fazer a sua tese sobre os movimentos antiamianto no Brasil, com destaque para a Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto – a Abrea –, da qual Fernanda é fundadora.

Viomundo – Pelas fotos no twitter e no Facebook da Abrea, antes da cerimônia em Bolonha, você esteve em Milão e Casale Monferrato com ícones da luta contra o amianto na Itália. Como foi esse reencontro?

Fernanda Giannasi – Além da indescritível emoção do retorno à pátria de minhas origens, a troca de experiências com nossos irmãos italianos é sempre uma recarga plena de energia para nós continuarmos na luta antiamianto no Brasil.

Viomundo – Esse contato é constante?

Fernanda Giannasi — Sim, há 24 anos. Inicialmente com a AIEA – Associação Italiana dos Expostos ao Amianto — e a ONG Medicina Democratica de Milão. Depois, com a AFeVA – Associação Familiares e Vítimas do Amianto de Casale Monferrato, a de Bari e  a da região da Emilia-Romagna. No início de junho, reencontrei todos eles.

A Itália foi um dos primeiros países do mundo a banir totalmente a fibra cancerígena. Foi em 1992 com aprovação da lei 257/92.

Desde então, desencadeou-se um efeito dominó que levou a União Europeia a adotar a mesma decisão, a partir de 1º de janeiro de 2005. Atualmente, mais de 70 países já baniram a fibra killer.

Os últimos a anunciarem o banimento foram o Canadá, onde entrará em vigor em janeiro de 2019, e a Ucrânia.

Viomundo — Quem são as pessoas que estão nessa foto?

Fernanda Giannasi – Começando, claro, por Romana Blasotti Pavesi, de vestido estampado de azul, no centro, a protagonista do livro A Lã da Salamandra, por nós traduzido e publicado no Brasil e que se encontra disponível em formato eletrônico aqui, no site da Abrea. 

Romana é símbolo mundial da luta por justiça para as vítimas. Perdeu marido, filha, irmã e sobrinho para o câncer do amianto – o terrível mesotelioma. Detalhe: apenas o marido trabalhou diretamente exposto na fábrica da Eternit, de Casale Monferrato.

Na minha frente, de blusa verde limão, Giuliana Busto, que substituiu Romana na presidência da AFeVA. Perdeu o irmão, que nunca trabalhou na fábrica da Eternit.  Morreu devido à contaminação pela poeira lançada no ar pelas chaminés da Eternit, em Casale.

A meu lado, à esquerda, Bruno Pesce, dirigente sindical histórico da CGIL de Casale Monferrato. Ele e o companheiro sincalista Nicola Pondrano (não está na foto) iniciaram a luta contra o amianto na comuna.  Ao lado de Pesce, Giovanni Cappa, atual vice-presidente da AFeVA e vítima de mesotelioma por contaminação indireta ou ambiental pelas tênues fibras do mineral, que já foi considerado a “seda mineral” ou o “mineral mágico”.  Na frente dele, Eliezer João de Souza, presidente da Abrea.

Viomundo – São inspiração para você?

Fernanda Giannasi – Sempre! Toda vez que vou a Casale Monferrato sou recebida com festa, muito carinho, respeito e afetividade.

Viomundo – São eles que te chamam de La Passionaria Brasiliana del’ Amianto — A Passionaria brasileira do amianto?

Fernanda Giannasi – Sim (risos). Lá, recebi uma das maiores honrarias da minha vida: o título de membro honorária da ANPI — Associação Nacional dos Partisans da Itália. A ANPI foi criada para preservar a memória daqueles que lutaram contra o nazi-fascismo. É uma homenagem que me traz a memória do meu avô materno e padrinho de batismo, Giovanni Miele, que foi ferido em combate na Itália.

Viomundo — O que é o Parque Eternot mostrado na outra fotografia? Eternot significa “Eternit, não”?

Fernanda Giannasi — Sim. No terreno onde durante 80 anos existiu a fábrica da Eternit, a prefeitura de Casale Monferrato erigiu o parque da memória, o Parque Eternot (não à Eternit, não ao amianto). O slogan da cidade é: Casale não é a cidade do amianto; é a cidade que luta contra o amianto.

Viomundo – De Casale você foi para uma cerimônia na Universidade de Bolonha, onde a pesquisadora e antropóloga da saúde Agata Mazzeo recebeu o título de doutora com uma tese sobre o ativismo contra o amianto no Brasil. Como nasceu essa parceria?

Fernanda Giannasi — Nos conhecemos em 2012 numa visita a Casale Monferrato. Ela havia terminado o mestrado em Amsterdã sobre o movimento social na luta pelo banimento do amianto em Casale. Perguntou-me se conseguisse apoio da Universidade de Bolonha, da qual faz parte, eu a ajudaria em seu doutorado aqui. Agata queria estudar o movimento antiamianto no Brasil e compará-lo com o da Itália.

Evidentemente disse que sim. Ela veio para cá em 2015 num convênio com a Faculdade de Saúde Pública da USP e passou aproximadamente um ano conosco, fazendo a pesquisa de campo para a tese, intitulada Movimentos e memória militante. Etnografia e ativismo antiamianto no Brasil.


Agata: Em outubro de 2016, na cidade de Campinas (SP), em seminário da Abrea, com vítimas do amianto e familiares; em Bolonha, na Itália, na cerimônia de doutoramento, onde foi oradora e falou sobre o movimento antiamianto no Brasil

Viomundo – Em que se baseou a tese dela?

Fernanda Giannasi – Num trabalho de campo realizado em Osasco, na Grande São Paulo, onde foram pesquisados os discursos e as práticas de ativismo das vítimas e demais membros da Abrea.

Como ela mesma descreve no sumário da tese: As histórias de vida, trabalho, sofrimento e ativismo deles são ilustrativos dos processos através dos quais as dinâmicas transnacionais dos desastres relacionados ao amianto são vividas e contestadas localmente.

Osasco, para quem não sabe, teve a maior fábrica de cimento-amianto da Eternit das Américas, pertencente inicialmente à multinacional suíço-belga (1939-1989), depois francesa (1989-1993), quando foi fechada.

O grupo Eternit foi nacionalizado a partir de 2000 e hoje comanda o lobby industrial do amianto. É o dono da mina de Goiás, através de sua subsidiária Sama, e mais quatro fábricas nos estados de Goiás, Paraná, Rio de Janeiro e Bahia. Controla também a fábrica da Precon de Anápolis, no estado de Goiás.

Viomundo – Como era o dia-a-dia da Agata?

Fernanda Giannasi – Durante quase um ano, participou de todas as atividades da Abrea: assembleias, reuniões, manifestações, seminários, semana antiamianto, ato ecumênico em memória das vítimas do amianto no dia 28 de abril de cada ano, audiências públicas etc. Viajou e conheceu os outros grupos locais de vítimas parceiros da Abrea.

Aprendeu o português fluentemente e seu trabalho de observação foi muito intenso. A partir daí, ela construiu a estratégia das entrevistas que fez, em profundidade, com as vítimas e familiares.

Viomundo — O que significa a Agata para vocês hoje?

Fernanda Giannasi — Exemplo da acadêmica dedicada e ética, que recebe as informações para o seu trabalho e, depois, as devolve aos pesquisados, ajudando o movimento social se aperfeiçoar, socializando seu conhecimento e as análises. Diferentemente de outros pesquisadores que se interessaram pelo tema amianto — e não foram poucos!

Viomundo – Os outros pesquisadores nunca fizeram isso?

Fernanda Giannasi – Nunca! Eles usaram as informações apenas para projeção pessoal e deleite próprio, não retornando sequer com uma cópia do trabalho ou um mero “obrigado”. Tanto que, até conhecerem a Agata, os membros da Abrea se sentiam usados e expropriados nas suas histórias de vida dolorosas e resistiam muito a abrir suas casas e seus corações. Se viam como ratos de laboratório, observados e estudados.

Agata levou-os a mudar essa percepção.  Todos se sentiram orgulhosos de fazer parte da pesquisa, emprestando-lhe as lembranças de quando eram trabalhadores saudáveis, as desventuras, os dramas decorrentes das doenças adquiridas por causa do amianto e a difícil sobrevivência a elas.  Hoje é a “netinha italiana” dos membros da Abrea.

Viomundo – Na semana seguinte à cerimônia de doutoramento de Agata, aqui no Brasil, a Eternit/Sama foi condenada a indenizar a família  de um trabalhador em R$ 1 milhão por danos morais. O que significa essa decisão já em segunda instância?  

Fernanda Giannasi – É uma grande vitória em todos os sentidos. Primeiro, porque o senhor Olavo Cardoso está vivo, apesar das limitações na vida cotidiana.  Ele trabalhou tanto na Sama, a mineradora do grupo Eternit, como na fábrica de fibrocimento da Eternit em Osasco e é portador de asbestose [endurecimento progressivo do pulmão devido à inalação das fibras do amianto, causando dificuldade crescente de respirar].  Seu processo vitorioso está disponível aqui.

Segundo, a indenização é de R$ 1 milhão. Há 22 anos, quando começamos a trabalhar diretamente com as vítimas,  as indenizações não passavam de R$ 20 mil e os acordos extrajudiciais oferecidos pelas empresas para quem estava com o “pé na cova” era de R$ 15 mil.

Viomundo — Há quanto tempo tramita essa ação? 

Fernanda Giannasi — Três anos. Este foi um dos avanços que tivemos com a Emenda Constitucional 45/2004, que transferiu da Justiça comum para a Justiça do Trabalho – “a justiça cidadã” – os casos de agravos relacionados ao trabalho e as ações de indenização. É esta JUSTIÇA que está ameaçada de deixar de existir se a nefasta reforma trabalhista for aprovada em nosso país por aqueles que querem extrair tudo dos trabalhadores, a mais valia e, como consequência da ganância pelo lucro, sua saúde e sua vida.

Assim, após a EC 45, o tempo de tramitação dessas ações foi reduzido quase à metade em todas as três instâncias. Tanto que, antes na Justiça comum, nunca se resolvia essas ações em menos de 12 a 15 anos. Hoje temos decisões de terceiro grau e o trânsito em julgado em aproximadamente 5 a 7 anos.

Em caso de morte, são propostas duas ações: a do espólio, que busca indenizar a doença em si; e a que leva em consideração a dor e o sofrimento causado aos familiares. É chamado dano moral indireto ou em ricochete.

No caso do senhor Olavo, a indenização considera o dano físico e moral sofrido pelo trabalhador pelo labor exercido.

Viomundo – Apesar de todas as comprovações científicas, a indústria nacional do amianto continua a dizer que o amianto crisotila, ou branco, que é o que ainda é permitido no Brasil por lei federal, é menos nocivo e que pode ser usado de maneira segura e controlada. Os juízes continuam embarcando nessa balela?

Fernanda Giannasi – Sinceramente creio que essa visão dos juízes tem sido aos poucos modificada. Prova disso foram os debates travados recentemente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e mesmo no Supremo Tribunal Federal (STF).

Merece destaque o voto do Ministro Herman Benjamin, no STJ, sobre a obrigatoriedade das empresas da cadeia produtiva do amianto enviar ao SUS listagem com o nome dos trabalhadores que foram expostos ao amianto e os que adquiriram doenças relacionadas a esta exposição e seus dados cadastrais desde 1995.

Essa exigência, prevista na Portaria 1851/2006 do Ministério da Saúde (http://www.abrea.org.br/legislação/sobre-o-amianto/118-portaria-1851-do-ministério-da-saúde.html), está suspensa por força de uma liminar obtida por 17 empresas do setor que impetraram mandado de segurança.

A referida liminar foi proferida pelo Ministro João Otávio de Noronha em dezembro de 2006.

O ministro Herman Benjamin produziu um voto robusto a favor da validade da portaria e a defendeu com a desenvoltura do seu notório saber nas questões ambientais desde o tempo que atuava no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Evidentemente ainda temos algumas conhecidas visões reacionárias, principalmente no STF. Porém, cada vez mais representam uma minoria, já conhecida sobejamente da opinião pública.Esses juízes se contrapõem firmemente ao pensamento progressista do conjunto do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que tem tido excelentes  decisões  em favor da Justiça Social.

Isso traz esperança aos vitimados do amianto e seus familiares, que cada vez mais ousam buscar o poder judiciário, rejeitando acordos extrajudiciais leoninos oferecidos pelas empresas.

Viomundo – Por falar nisso, o que diz o mais recente informe da Organização Mundial de Saúde  (OMS) sobre o amianto?

Fernanda Giannasi – Resumidamente, a OMS diz que a proibição pode salvar vidas e poupar dinheiro, pois “há custos substanciais e crescentes associados à continuidade da produção e do uso do amianto mundialmente”.

Acrescenta queos efeitos negativos a longo prazo superam em muito os benefícios econômicos a curto prazo. Custos substanciais com a saúde, remediação a longo prazo e custos adicionais de ações judiciais reforçam ainda mais a proibição de todos os usos e a produção de amianto o mais cedo possível em prol de um desenvolvimento econômico sustentável e saudável “.

Viomundo – Em 23 de junho,  você participou de uma reunião em Bruxelas a convite da ONU…

Fernanda Giannasi – Foi uma reunião promovida pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Fui convidada a discutir sobre os principais desafios para as pessoas que trabalham na defesa dos direitos humanos e os riscos e violências sofridas pelos defensores e defensoras.

No meu caso, abordei a indústria do amianto e seus métodos de intimidação, humilhação, violência física, emocional e moral e as inúmeras tentativas de desmoralização perante nossos empregadores, colegas e junto à opinião pública. Foram muito valorizadas também a questão de gênero e a violência sexista praticada contra as defensoras, que é uma realidade em qualquer lugar do planeta.

Em 2006, por conta destas agressões, fui incluída nos relatórios de duas plataformas da ONU. Uma delas,  Na linha de frente: defensores de direitos humanos no Brasil – 2002-2005. A outra:  Independência dos Juízes no Brasil. Aspectos relevantes, casos e recomendações, de 2005, em razão de nossa luta contra o cancerígeno amianto, que continua matando milhares de pessoas em todo o mundo.

A propósito: o trabalho conjunto com ONGs italianas foi vital para as nossas lutas e vitórias contra o cancererígeno amianto.

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