Oscar Buturi: “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar”

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Cidadão

por Oscar Buturi, em 09/10/2014, no Correio Paulista

Nesta semana, após o primeiro turno das eleições presidenciais e a vitória parcial da candidata Dilma Rousseff com expressiva votação no norte e nordeste, uma onda de insultos aos nordestinos tomou conta de boa parte das redes sociais, vinda principalmente do sul e sudeste, especialmente do estado de São Paulo.

Segundo a maioria das expressões discriminatórias, o resultado das eleições revela que os eleitores nordestinos são desprovidos de inteligência (para ser bem leve em meu exemplo).

Essa coluna normalmente é inspirada na cidade; sua dinâmica, problemas e desafios, curiosidades, etc., mas esse movimento reacionário que, aliás, também ocorreu após as eleições de 2010, me deixou mais uma vez perplexo e com dores de estômago, literalmente.

E retornando para casa após uma jornada de trabalho, me lembrei da música de Zé Ramalho, cujo título é bastante apropriado – CIDADÃO, que significa “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre”.

Por se tratar de uma típica história de migrante nordestino, a quem devemos muito, deixo a sua letra para breve reflexão, e também registrada minha indignação com essa postura contra nossos irmãos.

CIDADÃO (Zé Ramalho)

Tá vendo aquele edifício moço
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição, era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz desconfiado
“Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar”
Meu domingo tá perdido, vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio que eu ajudei a fazer
Tá vendo aquele colégio moço
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar
Minha filha inocente veio pra mim toda contente
“Pai vou me matricular”
Mas me diz um cidadão:
“Criança de pé no chão aqui não pode estudar”
Essa dor doeu mais forte
Porque que é qu’eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava, mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a colher
Tá vendo aquela igreja moço, onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo, enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá foi que valeu a pena, tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse:
“Rapaz deixe de tolice, não se deixe amedrontar
Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra, não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas e na maioria das casas
Eu também não posso entrar”

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Comentários

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Lukas

A música é de autoria do compositor Lúcio Barbosa e foi gravada originalmente em 1979 por Zé Geraldo. Zé Ramalho só veio a gravá-la muito mais tarde em 1992.

Edgar Rocha

É isto aí. Levar estes valores, estas referências culturais, éticas e morais junto com a ascensão social. Chega de funk ostentação (ostentar é de cima), chegar de forrozinho universitário (camaro amarelo, putz!), chega de som desumanamente alto na porta do próprio vizinho só pra mostrar que tem, chega de falta de respeito entre os iguais e culto à lei do mais forte! Estas coisas são valores absorvidos durante este processo que, sem dúvida não fazem a menor falta na construção de uma sociedade justa. Chega do complexo de lombriga, chafurdando na merda da sociedade e recitando o discurso de que esta é a “realidade”. Chega de caçar “defeitos” no próximo pra desqualificá-lo a fim de ocupar seu espaço. Chega de brincar de guerrinha apenas com inimigos acuados (o Alckmin ganhou! Alguém imagina em quem os revolucionários de junho votou? Aliás, cadê as manifestações pela água, pelo metrô????). É fácil culpar Brasília por tudo, sabendo que a Dilma não vai mandar descer o cacete em ninguém, sabendo que uma ou outra prisão ou algum tiro de borracha terá repercussão nacional e poderão se fazer de heróis. Chega de gente simples descendo assustada de ônibus na hora de voltar pra casa, pra que os heróis da revolução possam atear fogo e botar pra quebrar. A violência e o discurso esnobe são tão hipócritas e injustos que só nos trazem a certeza de que é bem melhor que não surtam efeito algum. Afinal de contas, pro cidadão comum, que sempre se manifestou organizado e pacificamente e qualquer um que deseje um estado de normalidade que garanta inclusive o direito à manifestação, tirar uma elite suja e violenta pra colocar outra não resolve nada. Há muito o que aprender com o povo com o trabalhador, sim. Mas, pra isto é preciso parar de incitar ações de acordo com interesses oportunistas. Voltemos aos princípios, antes que tenhamos que retroceder ao começo.

    Edgar Rocha

    Me perdoem pelos erros de concordância. É a pressa.

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