Bercovici e Fontoura: AGU e o desmonte das universidades públicas

Tempo de leitura: 4 min

Bercovici e Fontoura: Parecer da AGU faz parte do desmonte das universidades públicas no País

por José Augusto Fontoura Costa e Gilberto Bercovici, especial para o Viomundo

Recente parecer da Advocacia Geral da União (AGU) interpreta a Lei 12.772/12 de modo a impedir que as Universidades Federais exijam, nos concursos públicos para ingresso na carreira, títulos de mestre e doutor. Tal leitura, equivocada, desfigura a autonomia constitucionalmente garantida às Universidades e pode reduzir a precisão dos processos seletivos, levando à inclusão de fases inadequadas para a boa escolha de professores.

Há quase um milênio se convive com as universidades. Nasceram antes dos modernos Estados nacionais e, mesmo na América, antecedem em pelo menos mais de cem anos as independências políticas de quase todos os países– com a precedência da peruana San Marcos (1550). No Brasil, dado o zelo metropolitano em manter a submissão intelectual, o ensino superior teve de esperar a família real, antecedendo-a por alguns dias. Universidade mesmo, só no século vinte.

Embora a relação entre essas instituições e o Estado tenha variado histórica e geograficamente, o normal, sempre e em todo o mundo, é a determinação dos cursos, programas, projetos de pesquisa e, evidentemente, escolha de professores seja feita de maneira autônoma.

Diga-se, a propósito, que a memória da ingerência externa é invariavelmente triste. Em nosso país, dada a origem das primeiras e das principais escolas, a proximidade com o poder público é significativa, mas a consciência da necessidade de um ensino superior independente e sua proteção jurídica são muito recentes.

Embora as constituições de 1946 (Arts. 168, VI e 171) e 1967 (Arts. 168, VII e 172) falassem de liberdade de cátedra, bem como em ciências, letras e artes livres, foi só em 1988 (Art. 207) que a autonomia universitária e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão fizeram sua estreia.

Assim, respondendo a lutas e reivindicações históricas, o Constituinte pôs, com eficácia plena e aplicabilidade imediata, as decisões em matéria didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial nas mãos das Universidades.

Não é que se possa fazer qualquer coisa. Autonomia não é soberania. Há limites constitucionais e, especificamente, o dever de proporcionar não apenas o ensino, mas realizar pesquisa e atividades de extensão. São tarefas que as universidades, quando devidamente equipadas, com corpos docente e discente capacitados e preparados, realizam naturalmente.

Mesmo que com vocações e preferências diversas, os verdadeiros professores sabem que só pode ensinar bem aquele que consegue se mover com familiaridade e segurança nas fronteiras do conhecimento, o que só é proporcionado pela pesquisa de ponta. Do mesmo modo, a sociedade apenas pode receber os benefícios do fazer educacional se os projetos desenvolvidos têm qualidade e arrojo suficientes para impulsionar todos a novas atitudes, novas técnicas e ampliar a consciência da cidadania.

Disso tudo, há tarefas que o bacharel ou licenciado podem cumprir. Outras, apenas podem ser levadas a cabo por doutores que são, por excelência, os componentes típicos dos quadros docentes das instituições de ensino superior de todo o mundo.

Doutores passam por um intenso e exigente processo de treinamento em pesquisa, que permite a pronta identificação dos assuntos relevantes e das técnicas a serem utilizadas; só isso coloca os professores no limiar da descoberta científica e inovação técnica. Sem eles, desfalece a pesquisa e o ensino se limita à mera declamação dos manuais. Isso, apesar do que possa imaginar a AGU, é muito pouco, é uma visão medíocre e distorcida de universidade.

Tão pouco que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece o mínimo de um terço de mestres e doutores como corpo docente para que a instituição possa ser uma Universidade. É o mínimo.

As estaduais paulistas, por exemplo, exigem que todos os ingressantes na carreira detenham titulação de doutor. Baixar tanto o nível de exigência parece, infelizmente, dar eco à percepção de que a democratização do ensino superior deve ser acompanhada da perda de qualidade.

Ampliar o acesso é necessário e urgente, mas isso só tem sentido histórico e social se realizado com vistas à excelência e a partir das decisões tomadas em plenas condições de autonomia universitária.

Há, portanto, algo de amarga ironia no texto do parecer da AGU: a menção de que se trata de uma interpretação sistemática, como se tivesse sido realizada com “boa técnica”. No caso, porém, o técnico se comportou como um lacaio da literalidade estreita; só assim se pode ler em “será exigido o diploma de curso superior em nível de graduação” (Lei 12.772/12) como “as universidades (entidades constitucionalmente autônomas e que atuam a partir da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, devendo, nos termos da lei, ter seu corpo docente composto por um mínimo de um terço de mestres e doutores) não podem exigir mestrado ou doutorado como requisitos de ingresso”.

A lei não estabelece nenhuma proibição expressa: como se interpreta restringindo, portanto, a autonomia, que é mais que a discricionariedade? Não se fala “só será exigido”, mas se estabelece um padrão mínimo razoável em um país onde as desconfortáveis desigualdades regionais não permitem a todos os mesmos luxos de São Paulo. Não é padrão máximo, qualquer um que tenha o mínimo de experiência universitária vê isso.

Espera-se que não se perceba o óbvio tarde demais, como, na guerra civil espanhola, quando o filósofo Miguel de Unamuno viu seu templo do saber profanado pelos fascistas de Millán-Astray e os brados do paradoxal “viva la muerte”. A noção de ensino, pesquisa e extensão de elevada qualidade sem que as universidades possam escolher contratar mestres e doutores é, pelo menos, tão contraditório quanto.

José Augusto Fontoura Costa, professor da Faculdade de Direito da USP.

Gilberto Bercovici, professor titular da Faculdade de Direito da USP.

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Comentários

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Pitagoras

Não se preocupem. Esses luminares da AGU oportunamente serão alçados à Ministro do STF.
Lasciate ogni speranza voi q’entrate! É o inferno dantesco…

ricardo silveira

A AGU está a serviço de quem? As universidades públicas são a referência de padrão a ser seguido pelas demais instituições. Será essa a política do Ministério da Educação do Mercadante/Dilma? Se válida, uma decisão como essa resulta em reduzir o nível de qualidade do corpo docente das instituições e reduzir o custo das folhas de pagamento. Duas condições, entre outras, que explicam a baixa qualidade das instituições privadas.

Wolney Castilho Alves

“Bercovici e Fontoura: AGU e o desmonte das universidades públicas”

Prezado Azenha, pergunto se o título “AGU e o desmonte das universidades públicas” é da lavra de Bercovici e Fontoura.

Estranho tratar um problema, lamentável, de interpretação da AGU como se tivesse algo relacionado com “desmonte das universidades” o que, de fato, não ocorre. Muito pelo contrário. Soa oportunismo falar em “desmonte” no contexto deste artigo.

Ana Cruzzeli

A exigência tira sim a oportunidade de inovação.

Vou dar só um exemplo:
Um professor da universidade de cuiabá que ministrava aulas de VIOLA DE COCHO descobriu que só dois artesões em confecção de instrumento existiam no mundo e os dois estavam em Cuiabá. A Universidade tratou de criar uma cadeira chamada CONFECÇÃO DE VIOLA DE COCHO para que essa arte fosse perpetuada .
Se houvesse essa OBRIGATORIEDADE esse cidadão não poderia dar aulas de artesão afinal nem 2º grau ele tinha.
É DISSO QUE SE TRATA gente boba que só olha CANUDO.

E tem mais no ministério do trabalho há uma série de professores reconhecidos : Um deles é o professor leigo e outro é pratico. Por que disso? Por que por mais que as universidade sejam avançadas, a universidade da vida é muito mais avançada que qualquer outra. A universidade formal só formalizada o que a rua cria. NADA ALÉM DISSO.

lulipe

Nada a estranhar já que vivemos no país onde hino de time de futebol e receita culinária como tema de redação são bem avaliados no ENEM.Onde um ex-presidente se vangloriava de não ter curso superior nem de gostar de leitura…Queriam o quê??

Fernando Garcia

O fato da não exigência do título no concurso, não significa que a titulação não possa dar ao candidato uma grande vantagem no concurso. No ITA, por exemplo, o título de doutoramento não é obrigatório. No entanto, pelos próprios argumentos dos professores, é evidente que um doutor terá grande vantagem no concurso.

Mobilizar-se contra este entendimento da AGU é pura perda de tempo. Doutores terão em seus currículos contribuições importantes às suas áreas, bons projetos de pesquisa e maior experiência na área. Por consequência, suas candidaturas a vagas na universidades serão muito mais competitivas e por isso levarão o concurso.

A não-exigência da titulação poderia, talvez, abrir espaço para que pessoas sem titulação, mas com contribuições importantes, possam contribuir para a Universidade. Há precedentes neste caso: um dos mais importantes Físicos brasileiros, César Lattes, não tinha título e sempre quando perguntado sobre o doutorado dizia que um jovem com verdadeiro talento não deveria fazê-lo. Alguém pode dizer que nestes tempos de grande institucionalização da atividade, é uma visão por demais anárquica da ciência, mas devemos estar atentos a este arroubos anárquicos pois muitas vezes são estes que trazem as mudanças.

Outra questão que se põe é que o concurso público, por si só, é bastante inadequado como método de escolha de professores e pesquisadores. É evidente que devem existir chamadas públicas para estas contratações, mas o formato do concurso público é terrível.

Em minhas andanças e conversas ao descrever a colegas cientistas de outros países o processo no Brasil, já ouvi de tudo. Um colega em particular, norte-americano, considerou o processo uma humilhação e me perguntou porque nós nos sujeitamos a isto. Outro colega, Alemão, acha o processo tragicômico e, obviamente, jamais concordaria em participar.

Recentemente, me candidatei para um vaga no Imperial College. Foi uma chamada internacional. Enviei alguns documentos e caí em uma “short-list”. Fiz uma entrevista por SKYPE e ao final fiquei na fila. Da mesma maneira, no início de 2011 fui convidado para ir a Alemanha para uma seleção para um cargo de pesquisador onde fiquei por dois anos. Obviamente, tudo foi pago por eles.

Num concurso no Brasil, não só tenho que pagar taxa de inscrição e aturar toda uma burocracia como ainda tenho que financiar, por conta própria, minha viagem ao local do concurso. Aqui no Brasil é como se a vaga fosse uma conquista exclusiva do candidato enquanto que em outros países as instituições fazem chamadas públicas e buscam os melhores candidatos como uma forma de se fortalecer e manter seu legado. Trata-se de uma conquista que é também da instituição.

Mas enfim, no meu entender existem coisas mais graves acontecendo no Ensino Superior. Por exemplo, o lobby de determinado setor da intelectualidade parece ter garantido a “aprovação continuada” na carreira e não haverá nem mesmo concurso para o nível de titular.

Enfim, pobre universidade Brasileira.

    luiz henrique

    Parabéns Professor Fernando Garcia! Finalmente alguém com bom senso.

    É impressionante a quantidade de colegas que cedem à distorções como os que se manifestam sobre o assunto. O Brasil talvez seja o único país em que um diploma vale mais que o saber, pois em qualquer outro lugar, o diploma é mera conseqüência do processo acadêmico.

    Enquanto as universidades brasileiras oferecerem poucas vagas sempre será assim, é a lei da excassez, ou seja, excesso de demanda. Como na europa por exemplo, esse problema não existe, o título de mestre e doutor por si só não garante uma vaga em lugar algum e não me parece que eles estejam atrasados no ensino e na tecnologia.
    Terei paciência, um dia tudo vai mudar. Viva a competência!

Daniel

Qual o número do parecer e onde ele está disponível?

Alexandre

A pergunta a se fazer é que interesse oculto há por trás dessa decisão da AGU> No brasil se move montanhas para satisfazer interesses, muitas vezes de uma única pessoa; os velhos apadrinhamentos. Veja o caso do senhor fux…

Urbano

O segmento é quem mais se esforça, tanto que está trabalhando na base da produção, a fim de colocar boston no mercado e em grandes quantidades…

Athos

Essa interpretação da AGU é ridícula.
São, mais uma vez, advogados trabalhando para atrasar o Brasil.
Como tenho ódio dessa gente que representa o atraso. Não constroem nada e vivem do conflito.
Por isso ficam achando pelo em ovo. Para justificar o trabalho que tem.

Até desanima.

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