Aberto inquérito para apurar denúncia: PM de Alckmin dá uma de DOPS, tenta censurar trabalho escolar e expõe professor e menores a agressões nas redes sociais

Tempo de leitura: 6 min

Polícia Política - Sorocaba, SP

por Luiz Carlos Azenha, Caio Castor e Paola Carmello (clique na foto acima para ver o álbum no Flickr)

É como se duas jovens adolescentes, de apenas 16 anos de idade, “cumprissem pena” no interior de São Paulo. Elas não cometeram qualquer crime. São estudantes da Escola Estadual Professor Aggêo Pereira do Amaral, em Sorocaba, que fica a 100 quilômetros daquela que deveria ser a mais progressista metrópole da América Latina.

A pena a que as jovens foram condenadas, nas redes sociais, é por suposto “comportamento indócil”. Irônica — e tristemente — as adolescentes são exemplos vivos das teorias que o filósofo francês Michel Foucault desenvolveu em seu brilhante “Vigiar e Punir” [aqui, em PDF], publicado em 1975.

Foucault, num resumo brevíssimo: “Historicamente, o processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do século XVIII a classe politicamente dominante, abrigou-se atrás da instalação de um quadro jurídico explícito, codificado, formalmente igualitário, e através da organização de um regime de tipo parlamentar representativo. Mas o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente, obscura, desse processo. A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas”.

Ou seja: em vez do enforcamento e da guilhotina comuns nas monarquias, quando os crimes eram contra o rei, “dispositivos disciplinares” supostamente neutros e “igualitários”. Hospitais psiquiátricos, prisões e escolas cujas regras produzem o que Foucault chamou de “corpos dóceis”, submissos, indesejados pelo capital ou reprodutores da injustiça e da desigualdade.

A punição informal às adolescentes de Sorocaba, condenadas ao medo — e, por extensão, aos parentes delas, que estão muito nervosos com a situação — deveu-se justamente a um trabalho escolar sobre a obra de Foucault, que faz parte do currículo escolar oficial no Estado de São Paulo.

E, mais uma vez de forma irônica — e perversa — foi resultado da ação de uma corporação estatal — a Polícia Militar — cuja missão anunciada é a de “servir e proteger”. A quem, não pretendemos discutir neste texto.

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[Os repórteres do Viomundo foram a Sorocaba graças ao financiamento de nossos assinantes, a quem agradecemos. A sobrevivência deste blog depende de você]

O caso, segundo descrito por professores da escola — que também preferem não se identificar, por temerem represálias –, começou quando alguém fez uma foto de um dos muitos trabalhos sobre Foucault que estavam em exposição na escola e reproduziu em seu grupo no WhatsApp.

Logo o assunto se espalhou pelas redes sociais e foi parar em páginas do Facebook de apoiadores da Polícia Militar — segundo o site G1, dentre eles o Admiradores da Rota e o Sargento Alexandre. A PM paulista tem mais de 100 mil homens e uma estratégia de comunicação que enfatiza os salvamentos aéreos, os partos realizados por policiais e crianças fardadas.

[A Rota — Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar — foi brilhantemente descrita pelo repórter Caco Barcellos em livro]

A desmilitarização das polícias é um tema candente. As PMs no Brasil surgiram para combater o “inimigo interno” durante a ditadura militar e ainda são tropas subordinadas ao Exército. Hoje, “combatem” basicamente na periferia e matam um número desproporcional de pretos, jovens e pobres.

No caso específico do qual tratamos, o que surpreendeu a direção, os professores e alunos da Escola Estadual Professor Aggêo Pereira do Amaral foi o comportamento oficial da corporação.

Uma tenente da PM de Sorocaba, acompanhada de dois cabos, foi à escola exigir a remoção do cartaz. “Aqui tem uma apologia ao PCC”, teria dito ela, sempre segundo a descrição dos professores.

É um papel de fazer inveja ao antigo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, a polícia política extinta com o “fim” da ditadura militar, em 1985. Isso eu, Azenha, testemunhei pessoalmente como criança: policiais do DOPS, sem mandado judicial, invadindo minha casa para remover livros “subversivos”, inclusive romances encapados de vermelho!

PCC é o Primeiro Comando da Capital, que controla as penitenciárias de São Paulo e de vários outros estados brasileiros. Em 2006, depois de uma onda de ataques promovidos pela facção, o governador paulista Geraldo Alckmin, ao qual a PM é supostamente subordinada, teria feito um acordo com o PCC, segundo declaração recente de um delegado feita em depoimento judicial.

O professor de filosofia Valdir Volpato tentou explicar aos policiais que se tratava de um trabalho escolar mais complexo que aquela imagem isolada, que o tema é parte do currículo oficial e denunciou a intervenção da PM como tentativa de “censura”. A tenente, na descrição de uma colega de Volpato, disse que ao lado daquele cartaz deveria estar outro, louvando o trabalho da Polícia Militar.

O mais surpreendente viria nas horas seguintes. Diante da negativa dos professores e dirigentes da escola de retirar o cartaz, a Polícia Militar de São Paulo publicou nota oficial em seu site no Facebook. Do conteúdo é possível inferir a intenção da corporação de definir o que pode ou não ser dito nas escolas:

ESCLARECIMENTO E REPÚDIO

Cabe à Diretoria de Ensino, Região de Sorocaba, pronunciar-se sobre a veracidade do material e sobre a real qualidade de professor do senhor VALDIR VOLPATO.

Não queremos acreditar que, em pleno século XXI, profissionais da área de ensino posicionem-se de maneira discriminatória, propagando e incutindo o discurso de ódio em desfavor de profissionais da segurança, estimulando seus alunos a agirem sem embasamento e direcionando-os de acordo com ideologias anacrônicas, que em nada contribuem para a melhoria da sociedade.

A Polícia Militar de São Paulo e seus policiais, retratados numa infeliz charge, sempre difundida por determinados e conhecidos grupos, sempre foi e será grande defensora dos Direitos Humanos e dos deveres morais, éticos e legais da sociedade.

Estimular trabalhos apenas com pesquisas em Internet, matérias jornalísticas e material de criação confeccionados por pessoas parciais, está longe de ser uma metodologia aceitável. É preciso ter responsabilidade no processo de ensino.

A Polícia Militar está, como sempre esteve, de portas abertas a quem quiser conhecê-la e repudia a postura do infeliz professor, caso efetivamente tenha ocorrido esse erro lastimável.

CENTRO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PMESP

Em primeiro lugar, a PM se coloca num papel que constitucionalmente não é o seu, o de arbitrar o que é ou não metodologia de ensino aceitável.

Em segundo lugar, denuncia nominalmente o professor, que define como “infeliz”, antes mesmo de conhecer os fatos, o que admite ao dizer “caso efetivamente tenha ocorrido esse erro lastimável”. Apenas corrobora, no setor de comunicação, práticas das quais é acusada no dia-a dia: atira primeiro e esclarece depois.

Em terceiro lugar, usa um linguajar que remete à ditadura militar, quando fala em “ideologias anacrônicas” sem dizer quais ela pretende permitir e quais condena — como se fosse seu papel fazê-lo.

Em quarto lugar, ao reproduzir o cartaz que pretendia remover da escola, a corporação não teve o cuidado de proteger a identidade das duas menores de idade, que passaram a ser achincalhadas nas redes sociais. Uma irresponsabilidade inaceitável para quem publica fotos de bebês de farda.

Como se vê abaixo, o portal G1, das Organizações Globo, teve o cuidado que faltou à PM paulista:

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Embora temendo pela própria vida, as menores redigiram uma nota curta (veja o vídeo) que foi lida por um colega durante a sessão de desagravo que aconteceu nesta segunda-feira 28, em Sorocaba. O cartunista Latuff, autor do desenho que gerou a controvérsia, veio de Porto Alegre prestar solidariedade.

Gostem ou não dos desenhos do Latuff, o inciso nono do artigo V da Constituição de 1988, vigente no Brasil, diz:

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

A Polícia Militar paulista, ao que se saiba, não está acima da Constituição. Ou, pelo menos, ainda não!

O deputado Raul Marcelo (PSOL-SP) protocolou requerimento junto ao secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes (veja trechos abaixo). Ele contém dez perguntas. Segundo o parlamentar, “as instituições públicas devem sempre observar o limite de suas atribuições constitucionais, sob pena de exorbitar os limites que o constituinte lhes concedeu”.

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A seccional da OAB de Sorocaba pediu abertura de inquérito policial para apurar abuso de autoridade e violação do Estatuto do Menor e do Adolescente (ECA), devido à exposição indevida dos nomes das menores de idade pela Polícia Militar. A tomada de depoimentos estava prevista para ter início hoje.

Dois dirigentes do grêmio estudantil da ETEC Rubens de Faria e Souza, da mesma cidade, compareceram ao evento se dispondo a promover a mesma exposição também naquela escola.

“Putinhas e bandidos, é o que dizem da gente por aí”, afirmou uma estudante ao chegar recentemente às aulas, segundo o relato de uma professora.

Embora temendo individualmente a possibilidade de represálias, inclusive de violência física, os estudantes do professor Volpato lançaram nas redes sociais a campanha #SomosTodosAggêo.

Ainda que involuntariamente, a PM paulista prestou neste caso um serviço: provou que no Brasil Foucault está mais atual do que nunca.

Abaixo, as falas no evento de Rodrigo Chizolini — que representou o deputado Raul Marcelo — e do cartunista Latuff (nosso obrigado à Carolina Keppler):


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Comentários

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Milena

16 anos*
Não 14

Zé Francisco

Sr. Azenha: existe uma PEC que ganha força a cada dia, ela está no contexto da onda conservadora que impregna o atual congresso. Trata-se do poder de investigação, também conhecido por ciclo completo de atuação policial, defendido pelo coronelato das PM´s do Brasil. Isto significa que uma chacina ou homicídio praticado por policiais será investigado pela própria PM. É a famigerada PEC 434, recentemente batizada de “PEC da Chacina”. Mais um duro golpe contra a população pobre, especialmente dos jovens negros residentes em periferias de grandes cidades. Como não bastasse as políticas de segurança sofrerem o mesmo mal da Lei de Anistia, condenada pela OEA e absolvida pelo STF, consistente em não avançar e se amoldar à Constituição, agora estamos na iminência de um… retrocesso. A segurança é uma política que possui um foco menor das forças progressistas, e a PEC da Chacina passa desapercebida.

renato

Grande equipe esta do Viomundo.
Parabens, a voces devemos nossa
seriedade para com a Democracia..

Urbano

O direcionamento que estão dando a São Paulo, e já faz uma pá de tempo, é o próprio modelo que os fascistas da oposição ao Brasil querem implantar neste…

Julio Silveira

Não adianta se revoltar paulistada desvairada, vocês deixaram seu estado se tornar o polo irradiador da vilania e da tirania. Cimo seus lideres preferidos serão rejeitados voces preferem é balcanizar o Brasil.

FrancoAtirador

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Sobre “a Sobrevivência deste Blog na UTI Depende de Você”:
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Poderiam providenciar outra forma de Pagamento da Mensalidade,
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que não por Cartão de Crédito via PagSeguro do UOL/Folha dos Frias.
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Jair Fonseca

Só na época da ditadura vi isso. E a charge do Latuff é o retrato do crime cometido pela PM do Rio ontem, quando assassinou e forjou a “resistência” do garoto assassinado. Nesse caso, houve a gravação de tudo, mas sabemos que tal é o modus operandi da PM ao lidar com negros e pobres, todos os dias pelo Brasil afora, não só em SP. Polícia, só começando de novo, e mesmo assim ainda vai ser um problema por muito tempo.

Maria Lucia Gonçalves

tenho um filho nesta escola , uma escola velha quase caindo aos pedaços , igual á milhares no estado governado a mais de 20 nos pelo psdb . Porém um nível de docentes de dá orgulho aos pais e alunos . Viva a democracia , Viva o Professor Valdir Vopato e seus colegas , viva os alunos deste escola que sofreram na pratica com é a repressão no estado de SP governado pelo psdb.

Robson

PARABENS ALUNOS, PROFESSORES E DIRETORIA DA ESCOLA QUE NÃO ABAIXARAM A CABEÇA PARA ESSES CÃES DE GUARDA DE POLITICOS SAFADOS!!!

a.ali

Marat, faltou citares o RS onde o nobre secretário de segurança, sim, este é seu cargo sugeriu, em entrevista, que a população “mais capacitada” comece a se defender, tipo vá à luta…

Jorge Moraes

Boa parte dos integrantes das Polícias Militares – esta sombra projetada para o futuro pela ditadura contra o mínimo sinal de levante das classes subalternas – se creem portadores “da verdade”.

Tamanho absurdo foi significativamente reforçado por um complexo conjunto de interferências externas, cujo propósito último, manter a dominação burguesa, requer – e os Datenas e similares existem para isso – que os agentes policiais tenham confiança de estarem a combater “o mal”.

Um circo sinistro, vendido como estivéssemos em um Armaggedon.

Infelizmente, não é impossível que a prisão de Foucault seja pedida.

Protesto daqui, e parabenizo a luta das colegiais que fizeram o trabalho, bem como a participação do professor Volpato. E a postura da Escola, até onde pude notar na reportagem.

Parafraseando outro sábio (este, com aspas), o Sr. Galvão Bueno (seleção brasileira na copa de 2010, quando tomou o segundo gol da Holanda): a situação de quem defende os (comezinhos) direitos básicos de liberdade de expressão, liberdade de ensinar e aprender, já esteve melhor.

Marat

Azenha, Conceição e demais pessoas do Viomundo… Parabéns por sua luta desigual contra o vil mundo!!!
Matéria para ser lida e relida, durante séculos!!!

Marat

Meus caros, o que nos falta é uma esquerda verdadeira.
Todos os partidos que estiveram no poder ou foram de direita radical (casos de Arena e PSDB) ou partidos pintados de esquerda, mas que na verdade eram de um centro leniente com a direita, caso do PT.
Em todos os casos o pessoal da casa grande sempre mostrou sua força. Eles, com sua mentalidade escravocrata, típica dos séculos XVI, XVII, XXVIII e XIX ainda consegue manter um discurso que envolve e ludibria aqueles menos intelectualizados, e ai conta com a preciosa ajuda dos canais de TV, das rádios, dos jornais, das revistas de esgoto etc., de modo que esse círculo vicioso nunca seja quebrado.
O PT, até por uma esdrúxula aliança, perdeu uma oportunidade de ouro ao não fazer uma verdadeira Ley de Medios, e agora, que voltamos ao século XVIII, corremos o risco de voltar ao XVI, graças a governos como os de SP e PR.
Esse povo desinformado e ignorante está entrando no Metalismo, e, podendo ter e manter alguns metais, são capazes até de engraxar as botas daqueles que mantém esse tenebroso estado de coisas como está… Esse neomedievalismo dá medo!

serralheiro velho

Sou todo aggêo neste caso, apesar de respeitar e valorizar o bom trabalho policial. O corporativismo que se assiste na nota atribuída a PM é desserviço para a segurança pública e uma ofensa a sociedade.

Edgar Rocha

Prender duas crianças por “atitude indócil”????
É que a coisa está tão feia dentro da PM que já não dá nem pra simular serviço. O negócio agora é calar a boca de quem fala a todo custo (mesmo!!!!) É esta a principal atividade da PM: Defender-se dos questionamentos. O ocorrido nesta escola devia ser questão de justiça internacional.

FrancoAtirador

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A Corporação Militar é uma Organização Criminosa no Estado de São Paulo.
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Aliás, não só a PM, em se tratando de Instituições Governamentais Paulistas.
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    FrancoAtirador

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    E o Crime Institucionalizado se estende para as Demais Províncias do País
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    POLICIAIS FEDERAIS DO PARANÁ ADMITEM GRAMPO ILEGAL NA DELATA-JATO
    .
    O Delegado José Alberto de Freitas Iegas e o Agente Dalmey Fernando Werlang
    ambos da Polícia Federal (PF), admitiram, em Depoimento a Portas Fechadas
    aos Deputados Integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Petrobras,
    ter Instalado Escuta Sem Autorização Judicial, desmentindo o Comando da PF.
    .
    O Conteúdo do Depoimento foi Revelado hoje mesmo (29/9)
    pelo Próprio Presidente da CPI, Deputado Hugo Motta (PMDB-PB).
    .
    G1
    .
    .

Elizabeth de Andrade

Na outra ditadura, isso era chamado, “Patrulha Ideológica”.

Gerson Carneiro

Recentemente enquanto almoçava vi uma reportagem em um telejornal sobre um local no início de um viaduto em São Paulo onde a incidência de assaltos à mão armada enquanto o trânsito está congestionado é altíssima. Questionado, o Comando da PM afirmou que não tem homens suficientes para dispor no local a fim de baixa a incidência de assaltos. Seria porque os homens disponíveis da PM estão fazendo incursões nas escolas para interferir na liberdade de ofício dos professores?

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