A tentativa de apagar a História brutal de El Salvador

Tempo de leitura: 4 min

Queimando a história em São Salvador

Por Sarah Maslin*, no Counterpunch

Edição do fim de semana de 29 de Novembro a 1 de Dezembro

Nas primeiras horas da quinta-feira, 14 de novembro, três homens armados invadiram os escritórios da Pro-Búsqueda, uma organização sem fins lucrativos de São Salvador que reconecta famílias com crianças desaparecidas durante a guerra civil do país, que foi de 1979 a 1992.

Espancaram os guardas, jogaram gasolina nos arquivos da organização e acenderam tochas para queimar centenas de documentos. Na saída, ainda levaram computadores.

O ataque à Pro-Búsqueda não foi um crime comum. A Pro-Búsqueda foi fundada em 1994 para investigar os casos de quase 1.200 crianças separadas ou tomadas de seus pais durante a guerra.

Desde então, a organização vem usando testes de DNA e o trabalho de detetive e conseguiu identificar 175 jovens “desaparecidos”. Muitos foram adotados por famílias dos Estados Unidos ou da Europa, e agora se reuniram com suas famílias em El Salvador.

Porém, mais de 800 denúncias de crianças sumidas continuam sem resposta. As provas para ajudar a desvendar estes casos estavam entre os documentos destruídos pelos homens armados.

Por que?

No dia 20 de Setembro, a justiça salvadorenha anunciou a revisão da lei da anistia, de 1993, que manteve centenas de militares e oficiais do governo, inclusive os responsáveis pelo assassinato de seis padres jesuítas em 1989, fora da cadeia.

Se a lei for derrubada, boa parte das provas necessárias para processar esses indivíduos viriam dos arquivos de organizações de direitos humanos como a Pro-Búsqueda.

Outra organização com provas valiosas, Tutela Legal, escritório de direitos humanos da Igreja Católica, foi fechada abruptamente pelo arcebispo de São Salvador no dia 30 de Setembro.

Neste dia, funcionários da Tutela Legal chegaram para trabalhar e encontraram as portas de seus escritórios trancadas com cadeados e guardas plantados no hall. Disseram a eles que pegassem seus pertences. Fundada em 1977 pelo bispo Oscar Romero, Tutela Legal é um dos poucos grupos que ofereceu apoio e aconselhamento legal à população civil durante a guerra.

Apesar das centenas de pessoas que ainda dependem da assistência jurídica da Tutela Legal e da existência, ainda, de 50 mil casos pendentes, o arcebispo José Luis Escobar Alas decidiu que a organização não tinha mais razão para existir.

Esse tipo de sabotagem é muito familiar para os que sobreviveram as estratégias “anti-subversivas” do regime que estava no poder durante a guerra civil de El Salvador.

Livros foram queimados, protestos estudantis atacados, qualquer um que ameaçasse o poder da oligarquia podia ser caçado por esquadrões da morte ou baleado pela elite militar formada por batalhões treinados pelos Estados Unidos.

Mas, após três décadas de paz e diálogo crescente a respeito de diretos humanos em El Salvador, esse uso repentino de táticas de medo – sem dúvida com a intenção de intimidar os que questionam a lei da anistia – é preocupante, no mínimo.

É um problema para milhares de vítimas de abusos que, 30 anos depois da guerra civil, ainda querem ver os torturadores de seus maridos, os estupradores de suas irmãs e os assassinos de seus filhos serem julgados. Até hoje, nem um único caso de violência durante a guerra foi julgado nos tribunais salvadorenhos.

Entender a história salvadorenha é um problema para pesquisadores e estudantes que dependem dos arquivos de organizações como a Pro-Búsqueda e a Tutela Legal. Minha pesquisa neste verão sobre o massacre de El Mozote, em 1981, não teria sido possível sem o acesso aos arquivos e o apoio pessoal destes grupos de direitos humanos.

Porém, mais que tudo, os dois ataques recentes aos direitos humanos e à memória histórica são problemáticos para El Salvador.

El Salvador é um país no qual a história somente se tornou um curso da universidade nacional depois da guerra civil. El Salvador é um país no qual as sessões de autoajuda das livrarias são três vezes maiores que as seções de história.

“El Salvador é um país”, me disseram repetidas vezes os salvadorenhos neste verão, “que não tem história”.

Esses homens e mulheres queriam dizer que El Salvador é um país no qual estudar a história nunca foi considerado algo importante. Em geral, a história foi suprimidaGrupos de direitos humanos de esquerda formados durante a guerra civil foram pioneiros no esforço de preservar documentos, gravações e outros artefatos históricos; eles foram pioneiros na determinação de ensinar e aprender com seus próprios erros. Agora, essas organizações e seus arquivos históricos correm grande perigo.

O destino do arquivo da Tutela – que tem cerca de 80% dos documentos de todo o país relacionados a abusos de direitos humanos durante a guerra – ainda é uma incógnita. Há mais de um mês não é possível consultar milhares de documentos. Os cadeados continuam nas portas. Coincidentemente, 80% também é a porcentagem dos documentos cruciais que foram destruídos no ataque à Pro-Búsqueda.

O crime contra a Pro-Búsqueda deve ser investigado e os responsáveis devem ser punidos. O arquivo da Tutela Legal tem que ser protegido. Os Estados Unidos e a comunidade internacional de direitos humanos devem exercer pressão sobre as autoridades salvadorenhas para garantir que essas medidas sejam adotadas.

Apesar dos protestos em São Salvador após o fechamento repentino da Tutela e de declarações do presidente Mauricio Funes denunciando a invasão da Pro-Búsqueda, nenhuma atitude foi tomada.

Temos que nos preocupar com o que está acontecendo em El Salvador. Eliminar 80% do arquivo histórico não significa apenas queimar papel. É queimar a história.

*Sarah Maslin está no último ano da Universidade de Yale University  e é editora do Yale Daily News Magazine. Ela passou o último verão fazendo entrevistas e pesquisando nos arquivos de El Salvador para uma tese de história sobre memória política e o massacre de El Mozote.

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Comentários

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Jorge oliveira de Almeida

Não é uma incongruência, o país que mais faz alarde sobre os Direitos Humanos ser o que mais os vilipendia? Por que em qualquer movimento popular não vitorioso pelos povos de qualquer parte do mundo há sempre os dedos sujos dos EEUU? Não se peja a população norte-americana de ter governos tão vis??

Luís Carlos

Lá como cá a lei de anistia deu guarida para monstros estupradores, torturadores, seqüestradores e assassinos, com o beneplåcito do STF.
El Salvador foi palco das mais violentas ações de ditadura na América Latina patrocinados pelos EUA. A autora se ilude ao pedir para que os EUA façam alguma coisa contra. Eles farão. Apoiarão os ataques e queimas de registros históricos. Somente assim esconderão as mãos ensangüentadas do Tio Sam.
Parabéns, novamente, para Heloísa Villela. Sempre com textos oportunos e com muita informação diferente da pauta da grande mídia.

Matheus

É por isso que o d. Paulo Evaristo Arns enviou cópias dos documentos que deram origem ao relatório “Brasil nunca mais” para arquivos de países como Holanda e outros. É uma precaução de segurança importantíssima, sabendo que existem grupos terroristas de extrema-direita ligados de múltiplas formas aos antigos regimes ditatoriais pró-imperialistas.

Mardones

Um crime, sem dúvida. A decisão da justiça em rever a lei da anistia deveria vir acompanhada de uma atitude que assegurasse a guarda, a salvo, de instituições como a que foi alvo do crime.

Julio Silveira

A nomenclatura países do terceiro mundo caiu em desuso, mas nunca foi tão apropriada para designar os países da América, latinos, inclusive o Brasil. Não consigo entender por os governos que chegam ao poder por vias democráticas após os estados passarem por golpes e crimes contra a cidadania, fazem um grande mis encene de queixas sobre o passado mas nada fazem pela justiça cidadã. Para exemplar de forma a que este tipo de males não se repitam, ou se repetirem que os estupradores constitucionais ficassem sabendo que consequências teriam.
Mas não, preferem por panos quentes deixando a espada de damocles pendente sobre o peito da cidadania e sujeita as vagas ou turbilhões criados pelos perdedores insatisfeitos com uma democracia que não os atenda. Parece coisa intencional, para que esses países sejam sempre republicas de bananas.

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