Aborto no Brasil: As mulheres merecem ser presas? E morrer? Antes de responder, leia o que diz Melania Amorim, médica e ativista

Tempo de leitura: 7 min

por Melania Amorim, no blog Melania, estuda, Melania!, dica de Fátima Oliveira

Estima-se em cerca de 1 milhão o número de abortamentos clandestinos no Brasil. Como o aborto é ilegal no País, o real número de abortamentos não é conhecido, e para chegar às estimativas atuais recorre-se a uma série de métodos, os quais são discutidos em maiores detalhes nessa importante publicação do Núcleo de Estudos da População (NEPO) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Não há estudos cruzando diretamente abortamentos clandestinos e mortalidade, mas sabe-se que as complicações do aborto respondem por cerca de 15% das mortes maternas no Brasil, e que a quase totalidade desses óbitos são decorrentes de abortamentos inseguros. A legislação vigente que penaliza o aborto não consegue coibir a sua realização, mas antes tem reforçado as desigualdades sociais entre as mulheres.

Mulheres com boa condição socioeconômica recorrem com frequência a métodos seguros quando decidem interromper, mesmo clandestinamente, a gravidez. Ou porque têm acesso à informação de como obter misoprostol, medicamento que no país é de uso exclusivo hospitalar mas é amplamente vendido pela Internet, em geral procedente de países vizinhos onde sua venda é liberada. Ou porque encontram clínicas privadas em que se lançam mão de métodos rápidos e seguros, como a aspiração a vácuo.

Por outro lado, as mulheres pobres, desconhecendo os pontos de venda de misoprostol e as clínicas privadas, ou sem recursos para adquirir a medicação (que acaba saindo por um custo relativamente elevado, dada a sua venda em esquema de “mercado negro”), recorrem a estratégias inseguras e precárias (sonda com soluções cáusticas, uso de instrumentos pérfuro-cortantes) que não somente sobrelevam os riscos como hemorragia, infecção, lesões traumáticas para o trato genital, mas podem levar à morte.

As mortes maternas por aborto ocorrem caracteristicamente em mulheres jovens, de baixa renda, pouca escolaridade, estudantes ou trabalhadoras domésticas, residentes em áreas periféricas das cidades, e são mais frequentes em negras, que têm um risco três vezes maior de morrer por essa causa em relação às mulheres brancas. Uma face do problema que ainda persiste por ser mais bem estudada diz respeito às mortes maternas por suicídio, decorrentes de gestações indesejadas, com ou sem tentativa de interrupção. Em uma situação de desespero, a descoberta da gravidez gera um drama humano de proporções imensas, que pode acarretar tentativa ou concretização do suicídio.

É bem nítida a relação entre discriminalização e redução das mortes maternas por aborto, e um dos exemplos clássicos é a situação da Romênia, onde a taxa de mortalidade materna caiu depois que uma lei que proibia o aborto foi revogada. A lei havia sido aprovada em 1966, sob a ditadura de Ceausescu. Entre 1964 e 1988, a mortalidade materna no país subiu de 80 mortes por grupo de 100 mil nascidos vivos para 180 mortes. Após a revogação da lei, a taxa de mortalidade caiu para 40 mortes para cada 100 mil nascidos vivos.

Por outro lado, diversos estudos em países onde o aborto foi discriminalizado, como os Estados Unidos, demonstram que em médio e longo prazo reduz-se o número de abortamentos provocados, uma vez que, na legalidade, os programas de atenção pós-aborto (APA) permitem o aconselhamento contraceptivo das mulheres acolhidas pelos serviços de saúde para realização do aborto, prevenindo-se a recorrência da gravidez indesejada.

Certamente estamos bem longe de descriminalizar e legalizar o abortamento no Brasil, porque é grande a pressão dos grupos religiosos, apesar de o Estado ser laico. Tramitam na Câmara dos Deputados dezenas de projetos prevendo mudanças na legislação atual, que incluem desde propostas mais liberais como a legalização do aborto sem restrições, até as mais severas, proibindo o aborto mesmo nas atuais situações em que ele é previsto em Lei, como estupro e risco de vida materno.

O atual Código Penal, instituído pelo Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, inclui a prática de aborto na parte especial, título I (crimes contra a pessoa), capítulo I (crimes contra a vida):

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de um a três anos.

Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido e consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

E fica a pergunta que não quer calar: as mulheres merecem ser PRESAS? As mulheres merecem MORRER?

Diante da impossibilidade de se descriminalizar o aborto no Brasil dentro dos próximos anos, diversos esforços têm sido feitos para estabelecer o atendimento integral pelo Sistema de Saúde ao aborto nas situações previstas em Lei (estupro e risco de vida materno), e neste ano de 2012 o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido contido no Argumento de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 54, para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Em resumo, na atualidade os serviços de saúde devem proceder à interrupção da gestação a pedido da mulher em casos de estupro, risco de vida e feto portador de anencefalia, sem necessidade de alvará judicial para sua realização.

O Ministério da Saúde do Brasil tem uma Norma Técnica para ATENÇÃO HUMANIZADA AO ABORTAMENTO (2011).

Mais recentemente, e visando a abranger um número expressivamente maior de mulheres que não se encaixam nas situações supracitadas, está sendo discutida pelo Ministério da Saúde a implementação de formas de acolhimento às mulheres que decidiram fazer aborto clandestino. A política de redução de danos consiste na difusão de informações sobre alternativas ao aborto, os riscos e os métodos, além da realização de consultas com profissionais de diferentes áreas, visando ao planejamento reprodutivo e à diminuição da mortalidade materna por aborto ilegal no país, como foi informado na publicação da Folha de S. Paulo em 06 de junho de 2012.

No Uruguai, onde o aborto também é ilegal, a norma técnica define consultas com profissionais de várias áreas. A mulher recebe informações sobre o aborto e alternativas como adoção, passa por exames e tem tempo para pensar e decidir. Se ela mantém a intenção, recebe cuidados de proteção pré-aborto. Praticado o ato, a mulher passa por nova consulta para avaliação e educação sobre métodos contraceptivos. Nesse processo, é orientada sobre o uso do misoprostol, cuja venda em farmácias não tem restrições no país.

Segundo o Professor Anibal Faúndes, professor emérito de obstetrícia da Unicamp, grande pesquisador de renome internacional em Saúde Reprodutiva e colaborador da proposta no Uruguai, manter o aborto ilegal e criminalizado impede que o número de abortos diminua. “A legislação que criminaliza o aborto só faz com que ele se realize de forma insegura e clandestina, com grande risco para a saúde das mulheres pobres.”

No entanto, trabalhar com uma política de redução de danos permite minimizar os efeitos catastróficos das legislações punitivas, evitando mortes maternas e reduzindo o número de abortamentos. “Para os que desenvolveram a política, ela não só é uma atitude legal, como é ética e de direito humano básico.”  (FAÚNDES, 2012)

Esse modelo já existe no Uruguai desde 2004 e desde 2008 não se registram mais casos de morte materna decorrente de aborto inseguro no país. Vejam a matéria na revista Radis (Fiocruz) 117.

Vejam também o Guia da Federação Internacional de Planificação Familiar  (IPFF/ RHO) para promover a redução de danos por aborto.

No Brasil, para levar adiante essa política de redução de danos o Ministério da Saúde terá que enfrentar a pressão dos grupos religiosos, incluindo as bancadas religiosas do Congresso, que discordam com veemência da iniciativa e estão dispostas a contestá-la.

É importante que toda a sociedade civil se conscientize do problema do aborto e que possa discuti-lo de forma ponderada e consciente, e que os movimentos de mulheres atuem para garantir que a política de redução de danos possa ser adotada como recomendação do Ministério da Saúde. Discussões estéreis sobre o momento exato em que se inicia a vida não se amparam em qualquer fundamento científico validado, da mesma forma que os “advogados do feto” e os grupos autodenominados “pró-vida” esquecem que milhares de mulheres MORREM anualmente em decorrência de abortamentos inseguros, e que tanto a descriminalização, a legalização e a redução de danos irão impedir não apenas essas mortes preveníveis, mas garantem a redução das gestações indesejadas e do número total de abortamentos provocados. Ou seja: não se trata de ser contra ou a favor do aborto, decisão pessoal de foro íntimo, mas de ser contra ou a favor de uma política que salva vidas.

O que está em jogo, além da autonomia é do direito de escolha das mulheres, porque escolher se ou quando vai engravidar, se vai manter a gravidez, onde, como e com quem se vai ter os seus filhos é um direito reprodutivo básico, é uma questão de saúde pública especialmente relevante, diante da possibilidade de se reduzir o número de mortes maternas e o número total de abortos provocados.

Nota: o tema do aborto desperta até mais polêmica e mobiliza os preconceitos das pessoas do que a discussão sobre parto humanizado e local de parto. Mas eu não poderia, como mulher, mãe, pesquisadora, ativista e feminista, preocupada com o estudo das questões de gênero e a mortalidade materna, deixar de abordar esse assunto tão importante aqui no blog. Sei que isso irá dividir as próprias ativistas da humanização do parto e nascimento. Mas o que fazer? Não vejo nenhuma incompatibilidade entre defender a humanização da assistência à saúde em todos os níveis, incluindo gestação, aborto, parto e puerpério, e a descriminalização e a legalização do aborto, bem como a política de redução de danos. Digo mais, para mim é a mesma bandeira de luta, respeito à AUTONOMIA, aos direitos reprodutivos. Em luta contra a violência contra a mulher. Questão de gênero. Preocupação de saúde pública!

Melania Amorim é  médica-obstetra, formada pela UFPB, residência em Ginecologia e Obstetrícia pelo IMIP, mestrado em saúde materno-infantil (ênfase em saúde coletiva) pelo IMIP, doutorado e pós-doutorado em Tocoginecologia pela Unicamp e pós-doutorado em Saúde Reprodutiva pela Organização Mundial de Saúde.


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Comentários

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Grazieli Marinho

Boa tarde,
Estive procurando informações à respeito da venda do Misoprostol na Argentina e no Uruguai. Estou em dúvida se nesses países esse medicamento é vendido no balcão de farmácia sem prescrição médica. Alguém pode me esclarecer essa dúvida?

    Conceição Lemes

    Grazieli, vou consultar a Margareth Arrilha, da Comisssão de Reprodução e Cidadania e te responderei aqui mesmo. bj e boa sorte

Márcia Martins

Fiz um comentário elogioso ontem ao artigo e ao trabalho da Dra. Melania e ele não apareceu.

Márcia Martins

O trabalho da dra. Melania Amorim é esclarecedor. Parabéns

Mari

Brava Melania! Estou divulgando

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