Jorge Bermudez: Medicamentos essenciais não podem ser monopólio!

Tempo de leitura: 4 min

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por Jorge Bermudez, no site do CEE/Fiocruz 

Por uma questão de princípio e de direitos humanos fundamentais, os medicamentos essenciais, pela própria definição, devem seguir a orientação da OMS desde 1977, inseridos na estratégia de fortalecer a atenção à saúde e assegurar seu acesso.

Esse conceito vem sendo implementado nos últimos 40 anos, a partir da denominada Lista-modelo de Medicamentos Essenciais da OMS, que cada país define.

Nesse sentido, esses medicamentos não podem ser objeto de monopólio que impede a competição, levando a preços que implicam tolher sua acessibilidade em nossos sistemas de saúde e em especial no SUS. Não podemos pensar em medicamentos como pensamos em mercadorias, mas como insumos em Saúde.

Fica evidente pelas discussões nos grandes foros mundiais e em especial no Relatório do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas em Acesso a Medicamentos, que essa questão do acesso não se restringe mais a países de renda média ou baixa, mas passou a ser um problema enfrentado por todos os países do mundo, em especial, pelo advento de novos produtos contra a hepatite C e câncer e de produtos biotecnológicos, com preços que inviabilizam os sistemas de saúde.

Durante um ano, desde o final de 2015 até setembro de 2016, nós [15 especialistas selecionados pela ONU] cumprimos o mandato conferido pelo secretário-geral das Nações Unidas de “revisar e avaliar propostas e recomendar soluções para remediar a incoerência política entre os direitos justificáveis dos inventores, leis internacionais de direitos humanos, regras de comércio e saúde pública no contexto das tecnologias em saúde”.

Esse mandato se inseria na visão geral da Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável aprovados em setembro de 2015 pelos 193 Estados Membros das Nações Unidas.

O relatório do Painel de Alto Nível foi recebido com entusiasmo pela maioria da comunidade global, mas com ressalvas por diversos países e pela indústria farmacêutica.

Foi recebido com entusiasmo, pois uma série de propostas e ideias foram reafirmadas, propostas novas foram consensuadas e se abordaram temas de extrema complexidade e polêmicos, tais como inovação e acesso; propriedade intelectual e acesso; novos incentivos para P&D; governança, responsabilidades e transparência.

Ao todo, o relatório contém 24 recomendações, que podemos considerar que contemplaram as seguintes áreas temáticas: flexibilidades do Acordo Trips e Trips-plus; pesquisa financiada com recursos públicos; investimentos em inovação; obrigações e responsabilidades de governos, de organismos multilaterais e do setor privado; P&D, produção, preços e distribuição; ensaios clínicos; e informações sobre patentes.

Esse conjunto de recomendações deve agora ser traduzido em planos de ação concretos se esperamos conseguir expandir o acesso de nossas populações a tecnologias em Saúde.

O relatório, entretanto, poderia ter sido mais ousado. A riqueza das discussões e das contribuições não ficou expressa por completo no texto, devido à falta de consenso entre os membros do Painel.

Foi nesse contexto que produzimos duas notas em separado como comentários ao final do Relatório; não deixamos de apoiar as recomendações e as propostas, mas consideramos que deveríamos e poderíamos ter ido além.

Poderíamos ter avançado muito mais com propostas progressivas e visionárias na questão do financiamento, no enfrentamento das barreiras que a propriedade intelectual representa e nas alterações sistêmicas que precisamos discutir no atual sistema de inovação e regulação da propriedade intelectual.

Precisamos inicialmente reconhecer que o atual sistema se encontra falido ou quebrado! Tem tido sucesso apenas em recompensar a indústria farmacêutica desmedidamente em detrimento do acesso da população, com o lançamento de produtos não necessariamente mais eficazes, mas certamente muito mais caros.

Precisamos discutir um novo marco regulatório para propriedade intelectual de produtos farmacêuticos que seja consistente com leis sobre direitos humanos e com as premissas da saúde pública.

Um segundo ponto que discutimos e incluímos em nosso comentário é a obrigação de cessar imediatamente quaisquer medidas de retaliação a países que queiram implementar flexibilidades do Acordo Trips, em especial o licenciamento compulsório, e, ao mesmo tempo, que medidas punitivas sejam asseguradas contra os países que ameaçam e retaliam outros com menos poder de ressonância.

Nesse mesmo sentido, cada país tem que ter liberdade e soberania para decidir critérios de patenteabilidade que priorizem questões de saúde pública.

Durante o processo de elaboração do Relatório do Painel de Alto Nível, apontamos com bastante ênfase nas discussões que medidas Trips-plus devem ser imediatamente banidas e revertidas nos atuais tratados de livre comércio (TLC) que vêm sendo discutidos por países em desenvolvimento.

No nosso caso, foram retomadas as negociações de um TLC entre a União Europeia e o Mercosul, sendo necessário cuidado na análise do capítulo de propriedade intelectual proposto pela União Europeia.

Finalmente, consideramos que medicamentos essenciais, medicamentos estratégicos –ou qualquer outra denominação que venha a ser adotada nos diversos países – devem constituir um elenco de medicamentos isentos de proteção patentária.

Mesmo no atual sistema de propriedade intelectual, essa decisão seria perfeitamente factível por intermédio da denominada interpretação autorizativa do Acordo Trips, excluindo medicamentos essenciais de patenteabilidade por licenças compulsórias efetivamente automáticas.

Essa proposta poderia iniciar com o elenco da Lista Modelo de Medicamentos Essenciais da OMS, mas cada país teria a liberdade de adequar a lista aos seus perfis.

Essa proposta levaria, efetivamente, o Brasil a reconhecer os medicamentos essenciais no contexto do direito à saúde, assegurar os preceitos de nossa Constituição e dar um exemplo para o mundo.

Entretanto, sabemos que o rumo que o atual governo está tomando não é exatamente o de priorizar e respeitar os avanços sociais e os direitos humanos arduamente conquistados ao longo das últimas décadas, mas o de submissão a interesses privados que tendem a ampliar a desigualdade e a iniquidade na saúde e na vida de nossas populações.

Jorge Bermudez é médico e pesquisador da Ensp/Fiocruz; membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas


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