O dia em que Cora corou

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Por Marco Aurélio Mello

por Marco Aurélio Mello

— A senhora está a cara da Cora Coralina, disse à minha tia quando a encontrei.

— Ah se o seu tio te visse falando isso… Ele não podia ouvir falar no nome da Cora. Você gosta dela, né?

— Olha tia, li alguma coisa dela e gostei sim. O tio não gostava dela?

— Seu tio tinha uma bronca enorme dela. Sabe, ele era missionário da igreja e andava muito para aqueles lados de Goiás. Teve uma vez que ele e um colega foram visitar Cora. Chegaram lá e foram muito bem recebidos. Ela mostrou a casa, o jardim tão bem cuidado, de onde tirava de plantas, insetos e bichos sua inspiração, e a janela, às margens do rio vermelho, de onde observava o cursar da vida, entre uma receita e outra de doces, que fazia no tacho de cobre, no fogão à lenha… Mas foi eles saírem e Cora deu falta de um dinheiro, que ela guardava em segredo. A doceira e poeta correu para a delegacia e deu queixa dos dois. No dia seguinte eles iam ser fichados quando Cora apareceu e disse que tudo não passara de um mal entendido. Cora tinha trocado de esconderijo.

— Que chato!

— Seu tio ficou inconformado. Ela pediu desculpas ali, em público. Ele não aceitou. Disse que só aceitaria se ela escrevesse uma carta de próprio punho e assinasse. E assim Cora, corada, o fez.

Meu tio era um homem reto e bom, eu sei. Ia perguntar à ela que fim levou a carta, quando a chuva apertou. Disse adeus e voltei para casa perguntando: quantas memórias as pessoas têm? Quantas com a morte vão se perder?

Afinal, minha tia tão lúcida e rica de recordações tem 90 anos, senão mais. Vai ser assim com muitos de nós. Todos temos histórias engraçadas, curiosas, inacreditáveis, assustadoras, milagrosas até. Mas quem tem tempo de ouvir e registrar essas histórias? Por que no curso daquele tempo tão precioso não esperei a chuva passar?

Coincidentemente estive na casa de Cora recentemente, hoje um museu, patrimônio histórico, da cidade mais preservada do Brasil.

E Cora, o que diria?

“Me esforço para ser melhor a cada dia. Pois bondade também se aprende.”

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Marco Aurélio Mello

Jornalista, radialista e escritor.


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