Faça a coisa certa

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Por Marco Aurélio Mello

por Marco Aurélio Mello

Dois homens tocam a campainha.

Estou dobrando um cobertor no quarto.

Saio para atender.

– Desculpe, posso pedir um favor?

– Sim.

– Temos fome. Se o senhor tiver um sanduíche, ou um dinheiro… o que for mais fácil, der menos trabalho.

Peço que aguardem.

Vou à cozinha e olho sobre a mesa.

Há uma generosa fatia de bolo caseiro.

Divido-a em duas partes e as embalo.

Vejo um solitário pão amanhecido.

Corto, passo requeijão com capricho e o reparto em duas metades.

Acho que para dois adultos ainda é pouco.

Acrescento biscoitos de maisena e sequilos.

Pronto, já tenho um lanche!

Aí paro e penso: e para beber?

Olho em volta e vejo sobre o armário uma pequena garrafa de pinga, dessas de pet, de meio litro.

Será que deveria dar álcool para eles?

Não deveria ser água, ou suco?

São adultos.

Pareciam ser moradores em situação de rua.

“Eu podia estar roubando, eu podia estar matando…”

Eles pedem.

É domingo.

Fez frio à noite…

Quer saber? Fo**-se!

Passei a mão na garrafinha e coloquei-a junto, na sacola.

Entreguei-a a eles meio que apressadamente.

Não queria que trocassem comigo um olhar de cumplicidade.

Sentia-me culpado.

Hoje reflito, se fui o anjo que eles esperavam encontrar, fui um anjo festivo.

Sinto agora até um certo orgulho.

Acho que fiz a coisa certa.

Se eu estivesse no lugar deles tudo o que eu ia querer naquela situação era um lanche e um trago.

Só espero que, se Deus existe e é mesmo o cara que dizem que ele é, ele vai me perdoar.

Afinal, “eu podia estar roubando, eu podia estar matando…”

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Marco Aurélio Mello

Jornalista, radialista e escritor.


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Lukas

Na infância, minha mãe era pobre. Aos domingos e dias de festa vendia pastéis na praça da Matriz para ajudar em casa. Mas mesmo numa cidade de menos de 5.000 habitantes de Minas Gerais da década de 50, a pobreza tinha sua hierarquia. Minha mãe morava na centro da cidade numa boa casa e tinha um pai que trabalhava num emprego formal.

Dentre todas suas amigas, L. era a mais pobre, alguns degraus abaixo na hierarquia da pobreza daquela cidade. L. morava com a mãe na saída da cidade e viviam do que plantavam na horta. Coisa pouca. Nunca se soube do pai dela.

Mas L. e minha mãe eram amigas. Amigas de irem a missa, às novenas e à Adoração do Santíssimo todas as sextas. Amigas foram na infância e amigas continuaram na juventude.

Minha mãe deu sorte. Casou-se como meu pai, servidor concursado dos Correios. Salário pouco mas certo. Meses depois do casamento, foi transferido para uma cidade maior, 50 km de distância da terra natal.

L. continuou na sua vida, agora sem a amiga.

Num tempo em que as mulheres não davam, L. deu. Uma única noite afobada, escondida entre as couves da horta de sua casa. O amante foi embora para nunca mais voltar, sem saber que deixara uma filha para trás. Deram-lhe o nome de H.

L. agora, além de pobre, era mãe solteira. Apontada nas ruas, diziam que era má companhia. Perdeu as amigas e o respeito. Mas criaria sua filha.

Minha mãe, contrariando o que deveria fazer, permaneceu amiga de L. Se a extrema pobreza machuca um adulto, para uma criança pode significar a morte. Minha mãe ajudava. Todas as bonecas que a pequena H. teve na infância, foram dadas por ela. O bolo da única festa de aniversário também. L. só podia agradecer e incluir minha mãe nas orações.

Os anos passaram e L. agora era apontada nas ruas como A Bruxa. Perdera todos os dentes, os cabelos longos até a cintura ficaram precocemente brancos, fazendo-a aparentar muito mais do que os 40 anos que tinha. Descalça, sempre com o mesmo vestido rasgado, sem um sutiã para conter os peitos murchos.

Um dia, tinha eu uns dez anos, durante férias em que visitava a casa de meus avós, aproveitava a tarde modorrenta sentado na calçada brincando de nada. Sinto um vulto se aproximar, olho para cima e vejo L. A boca sem dentes sorri para mim. Estende a mão com um embrulho de papel pardo e diz:

– Pra você. Presente.

Pego o embrulho e mesmo sem abri-lo percebo que são dois ovos. Enquanto L. se afasta, balbucio um obrigado indiferente.

Entro na casa de meus avós para deixar os ovos, sem entender o que tinha acontecido. A casa era antiga, com assoalho de tábuas corridas, daqueles que fazem muito barulho quando se anda. A cozinha ficava num nível abaixo do restante da casa, separada por dois ou três degraus. Sem paciência para chegar até à mesa e depositar os ovos, jogo-os ainda da escada. Quebraram-se num som seco.

Consciente do meu erro, corri, mas não rápido o suficiente para que minha mãe não percebesse. Ainda na sala ouvi o chamado raivoso:

– Que ovos quebrados são estes que você deixou aqui em cima da mesa?

Volto e explico:

-L. me deu. Disse que era presente.

Minha mãe me olha, olha os ovos em cima da mesa e não diz nada. Pega o embrulho úmido, salva o que era possível salvar. Tempera-os com sal e pimenta do reino e se põe a fritá-los. Pôs no prato os ovos fritos, pegou um garfo e sentou-se numa cadeira. Não, não me deu os ovos para comer. Talvez eu não os merecesse. Olhou para mim e disse:

– L. não tem nada, então ela te deu de presente tudo o que ela tinha. Estes ovos saíram da boca de H.

Fiquei olhando minha mãe comendo aqueles ovos temperados com sal, pimenta e agora lágrimas. Impaciente disse:

– Posso sair? Os meninos vão nadar na lagoa da Pedrinha, queria ir.

Minha mãe fez que sim com a cabeça.

Durante muito tempo este dia fora inesquecível para mim, porque foi quando, nadando com os meninos na Pedrinha, aprendera a dar braçadas e nadar com a cabeça fora da água.

Só muito mais velho compreendi o que havia acontecido.

Espero que, se Deus existir mesmo e for o cara que dizem que ele é, ele me perdoe.

Não fiz a coisa certa.

    Marco Aurélio

    Lindo!!!!

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