Já não posso mais conversar com a minha mãe

Tempo de leitura: 3 min
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Por Marco Aurélio Mello

TV floating away, Bansky

TV floating away, Bansky

por Marco Aurélio Mello

Nos últimos 50 anos a televisão entrou nas nossas casas de um jeito avassalador.

Muita da nossa memória afetiva ficou associada a ela: a contagem regressiva do Ano Novo, a musiquinha dos artistas no Natal, o show do Rei em Dezembro…

Nós seres humanos somos movidos a hábito, memória e afeto.

Ao renunciar a tudo isso perdemos “pertencimento”.

Não podemos mais conversar sobre vários assuntos com amigos e em família simplesmente porque as falas, as referências e a visão de mundo ficaram condicionadas a esse “imaginário”.

Minha mãe, por exemplo, assiste à novela todos os dias. Não vive sem. Ela tem vontade de discutir a trama, a atuação dos personagens, a beleza de um ou outro astro…

Eu já não posso mais conversar com a minha mãe.

Assim como eu, muitas pessoas nos últimos anos aderiram ao esforço de tirar o Império global e seus sócios transnacionais do dia a dia, da vida.

É um esforço enorme, afinal, eles têm TVs, rádios, jornais, revistas, distribuidora de cinema, fundação “educacional”, bancada no Congresso Nacional, fazem ações comunitárias e têm um sem-número de tentáculos que em algum momento nos alcança.

Eles produzem notícia e entretenimento 24 horas por dia, sete dias por semana.

Além do chamado horário nobre, em que boa parte dos televisores do país inteiro segue ligada, independentemente da sintonia, há espaço para crianças, adolescentes, jovens adultos, mulheres (maioria da população, mas que por eles foi segmentada), idosos…

E tem mais: a possibilidade de cross media, usar um meio para difundir o outro: propaganda da TV no rádio, da novela no jornal impresso, do telejornal na revista…

O nome disso é propriedade cruzada, o que em qualquer país do mundo, qualquer, capitalista ou socialista, jamais seria aceito, porque é uma concentração descomunal de poder.

É um oligopólio de poder sufocante.

Para se ter ideia do alcance, todos os símbolos da nossa cultura foram capturados por eles, do futebol ao carnaval o que, para muitos, criou uma relação de amor e ódio.

Uns assistem para criticar, outros para se distrair e muitos, muitos mesmo, simplesmente porque sempre foi assim.

É a lógica do imobilismo diante do gigante que nos aprisiona.

Mas lembre-se: deixar de assistir é deixar de legitimar quem nos oprime.

E não vale fazer como muita gente que diz: ah, pelo menos o futebol, ou então: abro mão de tudo, menos da minha novela, da mini série. Ou por outra: eu só ligo para ver as notícias do dia, mesmo sabendo que eles manipulam…

A coerência é: não assisto! Nada, nada mesmo.

Afinal, como posso defender em público algo que não pratico no plano do privado?

Eles são tão poderosos que, quando alguém ganha relevância fora de seu círculo, o que eles fazem? Oferecem o palco, um contrato de colaborador, uma consultoria…

É a indústria cultural abrindo espaço para domesticar o novo, o “diferente”.

Afinal, eles também precisam de críticos, de outsiders desde que fiquem restritos ao seu pequeno espaço na programação, espaço este que pode aumentar ou diminuir a depender do grau de rebeldia que a “nova atração” conquistar.

Jô Soares saiu da “caixa”, foi tolerado uma, duas, três vezes… Um ou outro ator de vez em quando também extrapola. Todos são severamente punidos e silenciados para servir de exemplo aos outros.

Há jornalistas que foram humilhados e estão lá até hoje. É triste ver como a aparência deles mudou, como a coluna deles se curvou.

Os donos do poder não dão ponto sem nó. São os maiores e mais prudentes patrões do mercado, os que melhor remuneram.

Sem tamanha concentração de renda e poder, o meio artístico teria que ser reinventado.

É por isso que tantas iniciativas amadoras e toscas sempre foram recebidas com entusiasmo: foi assim com a programação do SBT nos anos 1980 e com a da Record nos anos 2000.

É mais lixo cultural, salvo raríssimas e honrosas exceções que servem apenas para justificar a regra geral.

É o tal “museu de novidades” do qual falava Cazuza.

É difícil, muito difícil romper tamanho cerco econômico, político e ideológico.

Exemplo: outro dia conversava com um ativista negro sobre tudo isso e ele dizia: “cara, temos que ocupar os espaços na mídia para ampliar nosso debate. Um preto no ar, com dois dígitos de audiência promove nossa luta. Não podemos abrir mão desta ferramenta!”

Será?

É preciso ser forte para resistir à tentação.

É preciso muita determinação para ocupar nossos dias de outras maneiras.

Estamos longe de uma mobilização contra quem está verdadeiramente golpeando e pilhando o nosso país.

Longe, muito longe.

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Marco Aurélio Mello

Jornalista, radialista e escritor.


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Comentários

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Edgar Rocha

O ser humano devia voltar a ter prazer em rebelar-se. Não vale à pena sentir-se incluso só porque tem mais porco no chiqueiro do que fora dele. No fim quem está dentro é que vira toucinho, quanto mais bem alimentado for. O preço é a vida, o direito a movimentar-se, chafurdar onde quiser, correr seus próprios riscos, deixar crescer as presas, enfrentar os perigos e, sobretudo, não ser castrado em nenhum sentido. A vida é difícil, sempre. Trocá-la por facilidades e aceitação não a faz melhor em nada.
A lavagem oferecida pelos que controlam nossa vida é tentadoramente mais adocicada que a raiz amarga que o mundo nos oferece. Mas, a primeira nos dá a gordura necessária para valer à pena o abate. A segunda é o que nos reforça a carne, nos torna intragáveis, nos tira a aparência de bolinhas inertes e rosadas de banha pra nos fazer uma fera que se impõe e inspira o respeito.

    Eduardo Maraninchi

    Que lindo! Adorei!

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